Poesia em tempos de golpe e pandemia: antologia poética – Por Claudio Daniel
Claudio Daniel é poeta, tradutor, ensaísta e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo (CCSP), diretor adjunto da Casa das Rosas e colunista da revista CULT. Atualmente, ministra aulas de criação literária via internet, no Laboratório de Criação Poética. Seus últimos livros de poesia publicados são Cadernos bestiais (2019), Marabô Obatalá (2020) e Fuyú, poemas de inverno (2020).
***
Poesia em tempos de golpe e pandemia
Seleção e introdução de Claudio Daniel
O Brasil vive numa situação insólita desde os movimentos antidemocráticos que levaram ao golpe de estado de 2016 e à eleição de um candidato de extrema-direita para a presidência da república, em 2018, que levou o país ao atual regime de exceção. Este quadro de cores macabras foi agravado por tragédias ambientais, sobretudo em Mariana, Brumadinho, Amazônia, no litoral nordestino e na região do Pantanal, pela crescente violência contra índios, negros, gays e quilombolas e a partir de 2020 pela pandemia do Covid-19, que causou a morte de 160 mil brasileiros. É difícil imaginar que nestes tristes tempos a criação poética não apenas sobrevive como tem revelado novos autores de refinada qualidade estética e variedade temática, que contribuem para a necessária renovação de águas da literatura brasileira. Nesta pequena antologia, organizada especialmente para a revista Ruído Manifesto, apresentamos 18 poetas de diferentes regiões do país, desde o Maranhão e a Paraíba até Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, de diferentes faixas etárias e grupos socioculturais, que revelam enorme riqueza poética, por sua diversidade referencial e estilística: temos aqui autores que trabalham com os temas do folclore, da mitologia indígena, do universo iorubá, do imaginário celta, ao lado de outros que desenvolvem composições sobre temas existenciais, eróticos ou políticos, mas todos eles com notável domínio do artesanato linguístico. São poetas que sabem o que dizer e como dizer, com plena consciência dos recursos da linguagem poética. Numa época marcada pelo horror inominável do neoliberalismo e do neofascismo, a criação da beleza e o cultivo da sensibilidade são também formas de resistência e de luta política, em direção a outra realidade possível.
***
Jade Luísa*
RITUAL DE CREPÚSCULO E CARVÃO
O cio se esgota pelas unhas, dilacera animais
de couro duro, desejantes
não há resposta senão tocar o púbis
A morte parece doce quando os cabelos viram cardumes a alimentar a prole
Aves de barro se fazem de folhas pra não virar presa
O cerrado gesta mais mulheres durante os pores do sol
Há cascavéis em todos os corpos
há milhões de vozes em cada anel de coco
Insetos cochicham:
chegam primeiro ao corpo, escavam o tecido frio
Tantos buracos nas costas, tanta água escoa pelo esôfago
tanto sangue na retina dos dias.
MARÉ: UMA APOTEOSE
I.
O céu se aproxima nos lábios da chuva
se pareço névoa
sou gota
– contorço o hálito do oceano.
II.
Demoro o buraco da cabeça
sobre o umbigo-concha
Ombros espreitam
coral-baço.
III.
Grãos de areia entre as dobras
do pescoço
mãos finas de jabuti
resquícios de nuvem entre-púbis.
IV.
Alvéolo-semente em cada tripa
peito do pé lambido
toque-beira-de-maré.
V.
Fôlego primeiro do choro
repouso das pálpebras
leque de sal
– Nove bacias de água e tentáculos
lânguidos
em transe.
VI.
Cada dedo de pele embevecido
frio-casco de tartaruga
Nas costas, fogem as constelações
sobram escamas, ciclones.
VII.
Vizinha da lua cheia, gaiata
implode a semente
da última vértebra:
mangue dentro do ventre
asa no murmúrio das ondas.
*Jade Luísa é potiguar de nascença, paulista de criação e brasiliense de passagem. Nascida no primeiro ano do milênio, cursa Letras na Universidade de Brasília e tem uns pares de poemas publicados em revistas literárias virtuais. Hoje se aventura como atriz-dramaturga no Coletivo de Teatro Enleio e trabalha no projeto de seu primeiro livro.
***
Edelson Nagues*
A CARNADURA DO MAL
Disseca-se
o corpo vivo
em praça pública.
O que se vê:
matéria fétida,
antes oculta.
Uns observam,
paralisados,
como num transe.
Outros escarram
seu gozo-bílis
verdeamarelo.
O que fazer
com a carne pútrida
que se fez verbo?
DAQUILO QUE CORRÓI
Intransponível
como um navio
atravessado na tarde.
Limiar de um tempo
em que vendavais
desalojam pássaros
dos vãos da memória.
A carne da maçã,
amiúde negada,
subtrai o elo
que jamais houvera.
Mil dentes ocos
Descarnam o silêncio
que escorre dos corpos.
Olhos de vidro
a vazar o feixe
daquilo que, em mim,
se revela e se doa.
Mãos ferruginosas
garatujam espantos
em toscos grafismos.
E pés carcomidos
insistem no vício
de andar em círculo.
*Edelson Nagues é mato-grossense radicado em Brasília. Tem textos publicados em antologias e revistas literárias, como Mallarmargens, Musa Rara, Germina, Zunái, Ruído Manifesto, Escrita Droide e Samizdat, entre outras. Publicou os livros Humanos (contos), Águas de clausura (poesia, vencedor do X Prêmio Asabeça), pela Editora Scortecci, e Palavras para estrangular silêncios, pela Editora Patuá.
***
Rosane Raduan*
HI-BRASIL
Pedaço de Pacha Mama.
Dizem que
seu nome
é braseiro
inspirado
na seiva rubra
de ibrapitanga.
Suas cores intensas
sempre vivas
nas flores e pássaros
sob a luz do sol
sempre incidente
como disse
o caraíba
na carta
ao seu rei:
primavera
sem fim.
As ondas
crispadas do Atlântico
contam outra história
para além
do tempo
vinda dos remos
velas ao vento
da nau de
São Brandão,
o Navegador.
Em busca
de lugares míticos
esquecidos
encontrou tambores
ancestrais
tocados por peles
de urucum e jenipapo
enfeitadas por
penas coloridas
celebrando
florestas sempre verdes.
É Pindorama
terra abençoada
de curupiras e iaras
onças jaguares
Jaci Guaraci.
Fáilte go
Hi-Brasil
FIANNA BÁNA
Bicho na mata evoca deuses
seus olhos
semicerrados
percebem
a divindade
sussurram:
oh, fianna bána
que está
embaixo
do portal
de bétulas
fianna bána
dos pelos
e cascos
brancos
chifres
de sete pontas
que tocam
no véu-
entremundos
o lusco-fusco
do poente
quando
em seu dorso
conhecerei
Tír Na Nóg
das cores
brilhantes?
*Rosane Raduan nasceu e mora na cidade de São Paulo. Fez bacharelado em Ecologia na UNESP – Rio Claro e mestrado em Tecnologia Nuclear no IPEN/USP, onde trabalha desde 1985. É aluna do Laboratório de Criação Poética ministrado pelo poeta Claudio Daniel. Tem um poema publicado na antologia 80 Balas, 80 Poemas.
***
Flaviano M. Vieira*
O ARRANHAR DAS SOMBRAS
Quando me vejo tardio
repartido e vazio
com dores nos poros
aflito eu ouço o envio
destemido e ardil
doente dos olhos:
“Não cede ao vento pesado
excremento estalado
que místico entoa
eco quebrado lembrado
fenecer transtornado
que a verve destoa”
Só ouço e almejo e declino
aridez do destino
em voz de manteiga
quando me vejo menino
de acidez desatino
eu ouço a trombeta:
“Foge a desnuda sangria
que dá à morte alegria
de ombros sem gás
suprime a voz do esguio
silêncio tardio
dos pobres mortais”
VISÕES DA TERRA
Homens com cheiro de árvore
absorvem bem as alucinações reais das raízes
e os hálitos árperos de disformes galhos
que se propoem a comer gramas nada interessadas em certezas deslizantes.
Homens com cheiro de árvore
preferem os desdizeres que não sabem nem se exigem saber.
No caule mesmo dos encontros inventados da desrazão
presenciam invenções.
Os braços de pegar seguram sentidos
e a busca de reflexos soltos em matéria deslizante
é destino traçado.
Nessa intimidade se ultrapassa o tamanho das coisas
em busca de seus segredos sem sentido.
O caminho percorrido é sorte de Ulisses em busca de Ítaca depois de Troia incendiada.
As trilhas traçadas envolvem buracos
e deles surgem imagens enigmas que resgatam
e traduzem símbolos invisíveis de matéria
em concertos de poesia
No fim é sempre perseguição de buracos da memória
que abrem e fecham como bocejos da terra.
*Flaviano Maciel Vieira nasceu em João Pessoa – PB. É professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem participações nas publicações: A Linguagem da Poesia (2011 – Editora Universitária da UFPB), Epifania da Poesia. Ensaios sobre haicais de Saulo Mendonça (2012 – Editora Ideia) e Turbilhões do tempo: notas e anotações sobre poesia digital (2015 – Editora Ideia), todas elas organizadas por Amador Ribeiro Neto.
*
Edir Pina de Barros*
ENCHENTE
A enchente muda rápido demais
a vida, na baixada cuiabana,
as águas vão cobrindo os pés de cana,
as roças de mandioca dos quintais,
e engole e leva muitos animais,
que vão parar distante, na savana,
enquanto apita, ao longe uma chalana,
que singra o rio, rumo aos pantanais.
Em cima dos telhados, as galinhas
– e muitas são das casas mais vizinhas –
aflitas cantam, longe de seus ninhos.
A enchente deixa a vida sem fronteiras,
as águas beijam portas – as soleiras –
e pescam, da varanda, os ribeirinhos.
DESPERDÍCIO
Na lixeira do rico o alimento
que se esbanja na casa do “nobre”
mas que tem na cabeça só vento,
preconceito que nunca se encobre.
Até pão, alimento de pobre,
lá se vê, decompondo, ao relento,
muito mais por ali se descobre,
revirando seu lixo nojento.
E meninos perdendo a inocência,
sem escola, com fome e sem pão,
revirando o indecente lixão!
Que injustiça! Tamanha indecência!
as pessoas sem lar, assistência,
e essa gente arrotando faisão.
*Edir Pina de Barros é membro titular da Academia Virtual de Poetas de Língua Portuguesa e da Academia Brasileira de Sonetistas. Participa do livro 80 Balas, 80 Poemas, organizado por Claudio Daniel (Zunái, 2.020). Seus poemas estão disponíveis em livros, antologias (Brasil e Portugal) e revistas eletrônicas (Ruído Manifesto, Portal Vermelho, Quatetê, Ser MulherArte e outras). Publicou poemas nas coletâneas Poesia em tempos de barbárie e A noite dentro da Ostra, organizadas por Claudio Daniel (Lumme Editor, ambas 2.019). É antropóloga, professora universitária aposentada (UFMT) e perita judicial (terras indígenas e quilombolas). Seu livro, Os filhos do sol (EDUSP, 2.003), foi indicado, pela Universidade de São Paulo, ao Prêmio Jabuti 2.004. Nasceu em Mato Grosso do Sul e reside em Brasília.
***
Sidnei Olívio*
PALETA DE CORES CREPUSCULARES
1.
Há um tangível hiato
entre as claridades
na epiderme do dia.
São dezoito horas
na cidade que arde.
O horizonte incandescente
parece o alarde do fim
nas aparências escondidas
e inquietudes solidificadas
que restaram à vida.
Essa é a soma fatídica
da herança que nos presta.
Nada que daqui se leva
e o que resta é pedra
sobre ossos pedra
sobre pó pedra
sobre pedra.
(Posto que o horizonte visto fosse o reverso do que vi – a impressão mal feita da tarde – morrer ainda assombra. Pois morrer assim é morrer sem nunca ter visto sobre a pedra o azul que não nos alcança).
2.
A manhã surge morna
e acalma meus olhos na hora branca.
Tênue paisagem dissolvida
na noite ao desassombro do dia.
A intempérie sobre a pedra é a gênese do solo
o berço utópico da planta.
ALI ONDE O PASSADO SE MISTURA
Ali onde o passado se mistura
ao presente das cidades que dormiram no tempo
morrer e renascer são gestos corriqueiros
(ali soam sinos e mistérios)
Essa torre onde badalam sonoros verbos
além das crenças o poema nidifica
no espaço próprio às sombras
Onde menos ocorram versos
os sinos anunciam cemitérios
e convidam às novenas
(ali soam palavras em cacofonia)
Dali eu salto para o sul
a realidade feito um rosto e um relógio em desalinho
é o caminho para se chegar ao desconhecido
(e jamais ser encontrado)
*Sidnei Olivio é natural de São José do Rio Preto, SP. Biólogo circunstancial e poeta por convicção. Tem dez livros publicados, além de participação em diversas coletâneas, revistas, sites de literatura e e-books.
*
Daniela Pace Devisate*
FANAA
Mais além dos rostos
na meia noite transcendente
onde os nomes flutuam
como lótus num lago
após serem unificados
no fogo de dor e amor:
um fogo alvo
fogueira de lírios que se dissolvem
no Oceano de Perfumes
PENÉLOPE
Crepúsculo:
o horizonte da janela
invade o leito
em himeneu de pássaros
harpias entoam
o canto lúgubre
da sua solidão
obscura
e sem trilha de estrelas
a noite engole seu tear
despida a túnica
sua nudez é farol
aos navegantes perdidos
ela braceja,insone
para não afogar-se
nas ondas revoltas do peito
e adormece apenas
quando a rósea Aurora
triunfa em sua augusta
carruagem
TESTEMUNHO DA MUSA
Nas palavras habita o Ser
abro a porta com a língua
e lá está um país
totalmente novo
*Daniela Pace Devisate nasceu em São Paulo,capital,em 1971.Formada em Pedagogia e licenciada em Artes Visuais, com pós-graduação em Arte-educação. Tem poemas publicados em diversas revistas literárias, como Mallarmargens, Literatura&Fechadura, Germina, entre outras. Seu livro individual de poemas sairá em dezembro de 2020 pela editora Urutau.
***
Jorge Amâncio*
VÊNUS NEGRA
na rua da mulher sem cabeça
a cabeleira
afro-caribenha
mistério erótico
na tela de Manet
o mar a deixou em Paris
beleza crespa sensual
amante das amantes
palco cor e estigma
a mulher do dândi
assistia às prostitutas
de nossa senhora
lorettes expatriadas
futuras mães
da belle-époque
a beleza da pele
agrava a nobreza
o poeta e a atriz
cristalizam o ódio
o perfume exótico
na cabeleira
uma serpente
que dança na varanda
onde nasceu?
quando morreu?
onde foi enterrada?
outro dia caminhava
na rua da senhora sem cabeça
para buscar o amante poeta
corroído pelo ópio e haxixe
com as flores do mal
numa das mãos
PONTO 45
o sol
espreita
pelas frestas.
a neblina
acalenta
os óculos escuros.
pingos
lacrimejam
o dia.
ando
ao portão
entreaberto.
a lembrança
entre rasga
a voz.
no silencio,
o cheiro de flores
e mármore.
a chuva fina
o arco-íris
despedem-se
da manhã.
a terra
cobre
o corpo.
Sem chão,
prendo
a memória.
mudo
a cama de lugar,
abraço
o travesseiro.
guardo
a munição
ponto 45.
ouço
Lupicínio Rodrigues
e choro.
*Jorge Amâncio, físico-poeta natural do Rio de Janeiro, foi para o Distrito Federal em 1976, teve o primeiro poema publicado pelo jornal Raça do MNU em 1980, participou da criação do Movimento Negro Unificado de Brasília, tendo sido fundador do Centro de Estudos Afro Brasileiro e do Grupo Cultural Asé Dudu. Dois livros solos, NEGROJORGEN, BATOM d’amor E MORTE e NÓSOURTXS, com poemas publicados em espanhol, revistas, jornais e participante de inúmeras antologias.
*
Marli Fróes*
CAÇA ÀS BRUXAS
Os algozes uivam na noite
pintam a caricatura
de nariz adunco
vassouras, verrugas
reverberando.
Na surdina devoraram
corações
expõem os dentes
vorazes
em sadismo dissimulante
Os algozes
varreram as mulheres
desde a sua
raiz primeira
em Eva ou Lilith
e continuam a devassa
nas praças,
redes sociais
salas de aula
Juízes chinfrins leram o martelo das feiticeiras
a caça às bruxas continua.
Mal sabem que elas, as bruxas,
São alquimia:
vestidas ou nuas,
ressurgem,
ao sol,
brisa
ou lua.
O MENINO NO HOMEM
Vestiu-se de uma tristeza- labirinto
com muitas saídas e também um fundo sem fim
não quis nem blues ou bofetão na madrugada
não restou nada a fazer
agarrou-se ao oco do mundo,
ao vazio impenetrável como o grito surdo-mudo
*Marli Fróes, poeta e ensaísta mineira, natural de Montes Claros, reside hoje em Diamantina-MG. Graduada em Letras, mestre em Linguística Aplicada pela UFU e doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF, é professora de Língua Portuguesa e Literatura brasileira no Instituto Federal de Educação do Norte de Minas Gerais. Publicou os livros de poesia Visceral, em parceria com Janete Ferreira e Gildete dos Santos e Carnaverbo. Fendas, seu próximo livro, está no prelo.
***
Maurício Simionato*
LABIRINTOS
Ferida de gente.
Feita de coisas que nos tocam,
agarra-se naquilo que nos salva.
Quando saiu ao sol,
deitou-se ao nosso lado
sem trazer respostas.
Veio como esporos ao vento.
E se decidir partir?
E se partiu entre nuvens?
Cansada de ouvir preces.
desgastada por indiferenças.
leva-nos aos seus labirintos,
faminta como Artêmis.
Testa-nos diante ao desejo de caos.
Respira por nós o cheiro
da chuva por vir.
Mostra os devires
que nos expõem à vida.
Embrulha os homens
em visões de abismo,
e reconhece-o
como reflexo nunca visto.
Mantêm os olhos bem abertos
ao nos ver passar.
Voltada às coisas que não vemos.
Socorre-nos, enfim,
de um fim do mundo qualquer.
É sagrada ao buscar perder-se:
aqui, no único tempo que existe.
Sempre a um passo de salvar-se de nós,
a fé deixou-se ir,
sabendo que voltaria: renovada.
Se há de seguir,
vai nos seguir.
AR REVOLTO
Os eucaliptos
Aplaudiam a noite
Porque esta lhe
Trazia o céu estrelado, às vezes.
E era por isso que desafiavam a gravidade.
Resvalavam folhas entre si
Para fazer ventar
A madrugada para debaixo de suas raízes
E na manhã seguinte,
Talvez eterna,
Faziam nascer novamente o ar revolto,
aos pés
Daquilo que os movia.
E o faziam sem ao menos
Saber o que é o amor
Assim, jamais se esqueceriam de ser
O que sempre foram.
Sabiam que o que lhes restava
era ser
E o faziam para desgravitacionar
A existência.
*Maurício Simionato, nascido em Assis (SP), jan/1973, e morador de Campinas (SP), é poeta e jornalista. Lançou os livros de poemas “Impermanência” (2012, selecionado pela Secretaria de Cultura de Campinas) e “Sobre Auroras e Crepúsculos” (2017, Multifoco), este último lançado na Bienal de Literatura do Rio/2017. Teve poemas publicados em espaços como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Arara Revista, Mural da Kotter, A Bacana (Portugal), Escrita Dróide, jornal ORelevO, Revista Gueto, Zunái, entre outros.
***
Lourença Lou*
ABISMOS
olho nos olhos do dia
:
café epidêmico
vis comboios de vírus
religião vendida em votos
epístolas de ódio
desabaladas calmarias
sentenças
de deuses-néscios
acenos cumulativos
de rasgado desamor
(minhas dez mil ilusões
de suaves paraísos
trancaram-se nos armários
das crenças infantis)
ignorando
as alegorias do divino
reforço minha fé
na palavra
em que me reconheço
onde pulsam
os abismos
cursos sanguíneos
da salvação de cada dia.
ALGUNS PORMENORES
não me cobre isso ou aquilo
há muito me têm consumido
os delírios que exaurem manhãs
nem venha me contar das viagens
de crianças em voos incertos
a redigir autofagia na tarde
não me cobre risos no outono
este tempo de olhares côncavos
a se desfolharem na memória
nem me leia poemas de cecília
agora que a indigência de retórica
armou-se de botas e balas
não me cobre ritmos e compassos
uma prosa feita de penumbras
já remete a refinados desconcertos.
*Lourença Lou é mineira, nascida nas terras vermelhas de Drummond, criada em Belo Horizonte. Formou-se em Letras, pós-graduou-se em Administração Escolar. Participou de várias coletâneas, Livros da Tribo, revistas e jornais literários, impressos e virtuais, com poemas, crônicas e contos. Publicou três livros de poesia pela Editora Penalux: Equilibrista (2016), Pontiaguda (2017), Náufraga (2018). Em 2020 lançou seu primeiro livro de contos: O insuspeitável perigo do instante-beijo e outros contos – pela Arribação Editora.
***
Regivan da Conceição Santos*
I
Turvos dias cobrem nosso tempo
refluxo da existência
fábrica de espanto.
Paira sobre o pantanal
o rubro terror
encravado nas sombras
que fogem da morte.
O fogo é jagunço arredio
mourão queimando à tapa olho
fumaça que habita o verso
lança dos perversos
nos corpos sob o paiol.
II
há um corpo estranho
as veias da casa ainda gritam
mas há um corpo estranho
vagueando entre os homens
as vozes dos homens
entre o nada e o sopro de tudo
o que cabe no recinto humano
um estranho corpo
estranho ao acaso
rusga engarrafada da noite
há um corpo estranho
e o ar arde outra vez
no silêncio o corpo existe
ainda que inerme
resiste
*Regivan da Conceição Santos é poeta, foi um dos ganhadores do prêmio literário “arte como respiro” do Itaú Cultural, em 2020. Tem poemas publicados em mídias digitais como os blogs “a gazeta de poesia inédita”, e “laborcria”, e na revista “mallarmargens”. Natural de Bom Jesus do Tocantins, cidade do interior do Pará, reside em Belém.
***
Paola Schroeder*
NUNCA
Aquele cheiro ferroso
trancava as narinas.
O andar travado
pelo bastão
em seus ombros.
Olhares opacos,
pedaços.
Cabeça baixa
mirando a morte.
Urrando em silêncio
por repouso.
O que era família?
Filhos?
As mãos engrossadas
pelo tempo.
Se tivesse a sorte
de tê-las.
Dizem vinte horas?
Quatro horas lhe sobravam.
Não, nunca sobrou nada.
Nem comida, nem sono.
Nada coube em suas horas.
Ele não cabia em lugar algum.
A carne é preta,
comida de cachorro.
MARIA
Persigo meus passos
Entre as telas
Meus olhos gritam:
– Caravaggio
Eu viro vulto.
E meu processo sinestésico
se inicia.
Coloco-me frente à pintura.
Começo devorando as formas,
Depois as linhas, luz, sombras e cores.
A mordida é doce.
Às vezes romper a imagem
exige o esforço de comer a maçã,
às vezes com a leveza do pêssego.
O ato de degustar é inexplicável, único.
Logo tudo está dentro de mim.
Com Maria foi diferente.
Na primeira mordida
não rompi as formas
como do jeito usual.
Quando mordi suas linhas,
meus dentes derreteram.
Fui sentindo como se eu
me desfizesse inteira
em suas sombras e luzes.
A sinestesia foi longe
e tomou forma.
Tinha cheiro de chuva,
gosto de laranja-lima.
Tinha voltas e mais voltas, picos,
uma ideia louca de movimento.
Era horizonte,
era brisa.
Som de concha,
pele em seda.
Devorei, num processo mimetizado.
Mas há belezas que escondem
linhas tortas, desajustadas.
Ainda que belas,
trazem no fim
o fel à língua
Seus fios enrolados em carmim
pintaram meus sentidos.
Segui cega, muda, surda. Sem tato.
Nunca mais paladar.
*Paola Schroeder é designer de interiores pela universidade Dom Bosco. Nasceu em Toledo, Paraná, participou da plaquete Tanto mar sem céu (Lumme Editor, 2017) e tem poemas publicados no blog do Laboratório de Criação Poética.
***
José Couto*
MEJE
sete velas perfumadas pra nanã
sete cantos desconcertantes
na pele da nação yorubá
sete estrelas alaranjadas do kilimanjaro
vão agradar iemanjá
sete flores do manjericão roxo
do sertão vão perfumar xoroquê
sete cores efervescentes girando
nos chakras da paixão
sete caminhos bifurcados
estradas de sim e não
sete silêncios ocos
no voo da meditação
mẹje ao avesso mẹtadilõgún
sete velas desconcertantes pra nanã
sete cantos perfumados
na pele da nação yorubá
sete estrelas do manjericão roxo
lá no kilimanjaro vão agradar xoroquê
sete flores flor da laranjeira vermelha
do sertão vão perfumar iemanjá
sete cores efervescentes
girando caminhos bifurcados
sete chakras da paixão
no voo da meditação
sete silêncios ocos
estradas de sim e não
CARURU E SIRIRI
salve ibejis! cosme e damião!
vai lá entra no círculo de erês!
vai bater cabeça pra zambi
sou filho de nvungi
angola congo queto!
omi beijada!
sou nagô omi beijada!
sou fogo ar água purificada
beleza travessura quindim cocada
sou filho de qualquer orixá
omi beijada!
pula dentro pula fora
omi beijada!
gira no siré
omi beijada!
olélé olélé
moliba makasi!
*José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
***
Andréa Moraes*
AVE RARA
Abelha e formiga,
vivi nos intervalos
entre as flores,
tentando afastar teu gesto,
teu por de sol
do meu mar.
ANCIÃ ADOLESCENTE
De pé, sobre a mesa,
Suja o teto
Arrogante
Ereta
Anciã adolescente
No cristal, no ar,
sua nudez apaga
enigmas de lua
com o rústico cântaro de barro
Barro nas narinas,
orelhas,
dedos,
punhos
Cordas nos tornozelos
Uma riqueza modesta
Toda branca:
forte pintura de marfim
Toda branca:
Cheia de opacidades
Imprime sua digital
Joga lama na sala
aos poucos;
por fim, aos montes
Depois se exibe,
Vaidosa
Como uma estátua
Mostra ao sol
Sua palidez:
Barro,
Quartzo rosa,
Amarelo.
E sua alvura.
A noite entrando em dia.
A morte sendo vida.
O silêncio, melodia.
*Andrea Moraes, pernambucana radicada em São Paulo, nasceu em 1964. Formou-se em jornalismo e direito, trabalhou como servidora pública, mas sempre quis ser escritora. Publicou nas antologias de contos Maus Escritores (Demônio Negro, 2009); Mamãe, vim só para uma visita rápida (Edith, 2010) e Alguma Objeção (Hussardos, 2015). Publicou Rachas (Edith, 2013), coletânea de crônicas. Em 2019 publicou a plaquete de poemas Olhos de Gato Pardo, lançada na Casa das Rosas.
***
Carvalho Junior*
OS OLHOS DO MUNDO
o mundo ainda está no escroto,
na ideia abaixo da ideia.
o mundo pensa em suicídio
antes do seu aborto
anunciado.
o mundo ainda não tem os olhos
r.a.s.g.a.d.o.s
pela cápsula do sombrião.
ZUNIDO
na carcaça da noite me desespero,
ardo em febre, ansiedade e medo.
de pés virados no leito, ao relento,
sou engolido pela angústia do tempo.
penso na velha Iaiá, rezadeira morta,
e um sussurro atravessa a porta
do meu esconderijo de sombras.
como se falasse por um cazumbi,
uma voz, caindo-me sobre os ombros,
expele a cólera de um bicho: e daí?
reviro-me nas camadas do sono,
meus olhos se dilatam em espanto.
choro, como em esquecidos outonos,
uma dor pronunciada em esperanto.
a agonia se instala nos cômodos da casa
e desmaio no poço de um mito raso.
que morto é esse que me abraça,
quando se revela um absurdo zunir?
uma mosca sem mãe cospe no vaso
o ruído sujo, bizarro — e daí?
a desdita da noite se estende,
aves de mau agouro desatam o canto.
desalumiado, um silêncio geme
e a lágrima desaba em contracanto.
como se o sonho morresse de pranto
por uma cruel adaga que nos abre aqui:
o inseto do nojo zune na fresta — e daí?
*Carvalho Junior [Caxias/MA, 1985]. Professor e poeta brasileiro. Autor de 5 livros de poemas, os mais recentes No alto da ladeira de pedra [Patuá, 2017] e O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia [Patuá, 2019]. Possui participações em jornais, revistas, antologias nacioanais e do exterior. Tem poemas traduzidos para o espanhol por Antonio Torres e Clarissa Macedo. Edita a página de poesia Quatetê.
***
Dirce Carneiro*
MAREIRO
Na praia,
não havia escudo.
A força do vento
Vencia o mar
cada vez mais perto.
Ondas gigantes em túnel,
a areia no ar desenhava
paisagem imprecisa.
Os grãos minúsculos
fustigavam a pele,
ferindo-a.
Longe estava a varanda,
o abrigo.
Cada vez mais distantes
a casinha amarela,
a visão da seringueira.
Vultos de braços acenando.
de repente,
a mão estendida.
Agarrei-me neste barco,
a vida.
Raio de sol teima em penetrar
as nuvens fechadas:
depois,
só os sinais da ressaca.
QUE NÃO SEJA LAZER
Assistir à tv
ouvir o jornal
as notícias
de horror
jamais serão
algo normal
*Dirce Carneiro nasceu em Minas Gerais e reside atualmente em São Paulo (SP).. Graduada e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Participa de coletâneas, antologias, revistas e grupos de Literatura, nas redes sociais e também do Laboratório de Criação Poética. Publicou seu primeiro livro solo em 2020, pelo Mulherio das Letras, Coleção II “Retrato em Verso e Vista”, Editora Venas Abiertas de BH-MG. Contato: Face: https://www.facebook.com/dirce.carneiro.3. Instagram: @dircegcarneiro. Email: dircecarneiro@terra.com.br
***
Ewaldo Schleder*
BOCA DA NOITE
a boca da noite silencia
é hora de ouvir estrelas
e a grande ópera do dia
no quebra-cabeças do sonho
dormem os pássaros do dia
a boca da noite silencia
gatos arranham violinos
afinados em ursa maior
fatalidades se repetem
alguém fugiu da liberdade
a boca da noite silencia
já no segundo meio-dia
um pobre veste roupa nova
e desconstrói o velho dia
em tempo de pantomima
a boca da noite silencia
ROLETA RUSSA
roda de pau
roda quadrada
couro faísca
borracha metal
chamas acesas
cabeça nas nuvens
solo de pedras
mergulho nas águas
rastros perdidos
cheiro de mato
testa franzida
lábios cerrados
asfalto vermelho
céu pedrento
lágrimas caídas
vultos mascarados
noite americana
todos os riscos
vitrine de surtos
uivos decibéis
encontro de bafos
fuga de caras
troca de tapas
rotas ocultas
na massa dos olhos
sussurro cansaço
jogo acabado
ninguém amanhã
nas telas rasgadas
arte frustrada
paisagem urbana
retrato de marte
*Ewaldo Schleder é curitibano e vive em Florianópolis. Escritor, jornalista, redator de publicidade. Colabora em diversas mídias, no País e no exterior. Autorias: Nada de novo debaixo do sol, Alvo móvel, Jiboia gravata serpente (teatro). Participação em Mercosul no Divã (ensaio), Dez poetas do Sul (poemas). Acaba de lançar o livro Pantaneira (reportagem-poema, fotos) e ainda em 2020 publicará o livro de poemas Leite de Pedra.
DIRCE CARNEIRO
Orgulho imenso ver minha poesia nesta revista. Gratidão.