Poesia pernambucana sim, por que não?
A curadoria “Poesia pernambucana sim, por que não?” foi realizada pelo escritor Luiz Renato Souza Pinto.
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Que a poesia não tem sexo eu já sabia, embora feminina, como a literatura, a música, as artes como um todo. Seja de pé quebrado, verso livre ou branco, ela se impõe sobre todas as artes, qualquer suporte que suporte o discurso da liberdade de ser e estar.
Que a poesia bebe na fonte da eterna juventude já é sabido por todxs; mas insisto em trazer a boa nova que não envelhece nunca: viver sem poesia é desperdício demais para uma única vida.
E tenho parceiros que passeiam pelos inúmeros gêneros que não me deixarão aqui sozinho neste discurso efêmero, repleto de destemperos. E hoje quero falar dos pernambucanos, ou melhor, de alguns deles, pois ainda ficaram de fora David Henrique, o Birigui, Cida Pedrosa, Jorge Filó e muitos outros. Mas sigo distribuindo a posse da palavra, hoje com Carlos Barros, que do Recife me traz sua
Saudade
No dia em que a saudade
doer violenta
a areia de uma praia
lembrará você,
o solitário aplauso
dum bêbado perdido,
no cinema, a pele ardendo
e eu sem te ver.
No cais, navios e barcos
me trarão de volta
o táxi passeando entre os coqueirais;
a ficha caindo e a radiola
cantando a saudade
que ainda vou sentir.
A espuma da cerveja
que fica em meu bigode
resguarda todo o cheiro
pr’eu sentir depois,
quando uma estrada
longa e tortuosa
me fizer mais um estranho
e desmanchar nós dois.
De Ouricuri, ecoa um pedaço de voz dos sertão, essa mistura de rapper com educação popular que faz dele, Júnior Baladeira, um verdadeiro comandante dessa nau sensata que faz da poesia a força motriz de todo um uniVERSO, com seu comando a todo o vapor nestas décimas decassílabicas:
Casinha de taipa
Da casinha que meu avô morava
Restam muitas histórias pra contar,
Chora um torno sem rede a balançar
E a janela que vó se debruçava,
Sobra um velho pilão que ela pilava
E pra nós uma saudade danada,
Quando o tempo se escancha e faz morada
Tudo acaba e fica a recordação.
Inda ontem caiu mais um torrão
Da casinha de taipa abandonada.
Em janeiro de 2018, conheci Elenilda Amaral em São José do Egito. Ela estava junto a outras moças que se responsabilizam por elevar a poesia a um grau máximo da escritura. Sua assinatura faz da linguagem espaço de recriação poética em respeito a todo o cabedal das letras nordestinas. Essa moça, de Afogados da Ingazeira, traz o vigor da poesia popular, em sua essência, observem as décimas a seguir:
Como pode existir tanta maldade
Sobre a face da terra que Deus fez
Onde o pobre que é pobre não tem vez
Quando tenta crescer, cai na metade.
Se resolve pedir por caridade
Sai vexado da cena ouvindo um não…
Vai juntando a riqueza o rico, em vão,
Pois pra Deus vale mais se dividida
Quando o banco de Deus empresta a vida
Não calcula o valor da prestação.
Como pode, fico a pensar. Da região metropolitana do Recife explode a poesia dessa mulher maravilha de entreversos que conheci no projeto Arte da Palavra, Circuito Oralidades, aqui em Cuiabá, em 2016. Luna Vitrolira, que depois encontrei também em São José do Egito e com quem mantenho contato, tem se destacado com uma poesia para lá de contemporânea, sem abrir mão das mesas de glosas, da verve interiorana que dá viço ao seu discurso. Faz mais de ano que não a vejo. Alguns dias.
Há Dias
Há dias em que necessito silêncio
e não quero me mexer
e não quero falar
e não quero abrir os olhos
nem sair de dentro de mim
Há dias em que sou paz e guerra
tumulto condensado em meu túmulo
alguém que tenta ler o futuro no lodo das horas
procurando sonhos dentro de um balde
Há dias tenho sono
vivo exausta da ignorância alheia
E sinto saudade do pé de manga da minha rua
onde eu empinava pedras e não pensava na morte
A poesia em Pernambuco é água de nascente boa, flui naturalmente como um dedo de prosa. Quer seja nos arredores de Recife, quer seja ao longo de todo o agreste, ou então vicejando pelo sertão, é amor para mais de metro. O cheiro de poema brota do chão seco, como fossem versos de Chico Pedrosa, se ouvem nos acordes ritmados de Silvério Pessoa, nas imagens que brotam do mangue. Terra de muitos ritmos, como os que embalam os versos de amor sagrado, e, como os de Dayane Rocha, de Brejinho de Tabira, de maneira decassilábica:
Amor profano
Nosso cheiro ficou em nossa palma
Nosso carro de amor é tão sem freio
Que até quando ele pega no meu seio
Sinto até mais segura a minha alma.
Quem quiser me amar tem que ter calma
E ter o coração fortificado
Porque eu vou tirar o atrasado
Por ter me adiantado no andor.
“Amor santo demais é sem sabor
O gostoso é com gosto de pecado”.
*
Luiz Renato Souza Pinto lançou, em 1998, o romance Matrinchã do Teles Pires, que trata da colonização do norte do Mato Grosso ao longo dos anos setenta, durante a ditadura militar (o livro ganhou nova edição em 2019). Em 2014, veio Flor do ingá, desdobrando a aventura e apresentando o cotidiano de um casal que se conhece em Londrina, Paraná, e vem para o Mato Grosso, quando então se separam. Em 2018, Xibio completa a trilogia, destacando a vinda de nordestinos para garimpos de diamante em Mato Grosso e Goiás. O autor também publicou Duplo sentido (crônicas), em 2016, em parceria com o pernambucano Carlos Barros e Gênero, número, graal (poemas) em 2017, ganhador do II Prêmio Mato Grosso de Literatura.