Quando li Rubem Fonseca – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Quando eu tinha uns dezesseis anos, escrevi um conto e enviei para a redação da revista Capricho. Era um conto sobre um assassino em série que matava travestis. Em determinado momento, após apresentar a quem lê um apartamento meio decadente, meio arrasado, a narradora diz:
Ao olhar diretamente para dentro do quarto, veria uma cama de casal, roupas e o lençol queimados, latas de cerveja e o disco velho rodando na vitrola. Mas se olhasse para o chão, veria o corpo. Ou se entrasse sem olhar, tropeçaria na cabeça”.
Era essa história que eu gostaria de compartilhar com outras adolescentes. Obviamente não aconteceu e eu me esqueci do conto. Só o redescobri há uns dois anos, quando arrumava caixas cheias de papéis velhos. Lendo o conto, tive certeza: havia lido Rubem Fonseca e estava fascinada pelo estilo do autor, queria experimentar fazer algo parecido. O texto estava escrito em folha de fichário, digitei-o e, como não havia título, resolvi intitular “Quando li Rubem Fonseca”. Meu processo de escrita na infância e adolescência repetia com frequência a tentativa de usar recursos narrativos e poéticos retirados dos livros que lia, das escritoras e dos escritores que admirava. Escrevi contos e poemas inspirados em Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Carlos Drummond de Andrade. Fico pensando como seria conhecer Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo naquela época. Não importa mais, porque tenho as duas como grandes referências para minha escrita hoje.
Enquanto fazia esse processo de resgate do conto “Quando li Rubem Fonseca”, ficava pensando no quanto eu sempre quis ser escritora e na ânsia que eu tinha para que isso se realizasse. Quando essa ânsia foi tomada pela insegurança e pelo medo? Refaço perguntas cujas respostas já sei.
Vinte anos depois, numa distopia pandêmica, escrevo poemas sobre isolamento, solidão e medo. Publico poemas tão íntimos que me lembram a coragem aquela adolescente que colocou uma folha de caderno no envelope e levou ao correio para enviar a uma revista de enorme sucesso nacional. Não sei que danos teremos de reparar no futuro após vivermos esse tempo de destruição, é impossível prever. Por isso precisamos lutar pela vida, porque no tempo dela sempre poderemos nos resgatar, mesmo diante de adversidades, dizer o sim retrospectivo e abraçar sonhos e ideias soterrados no tempo.
Na história do meu resgate, há um capítulo inteirinho para esse conto, cheio de defeitos e caricaturas, escrito por alguém que tinha a coragem ingênua de quem sabia ser quem era.