Quatro contos de Manoel Herzog
Manoel Herzog, nascido em Santos a 24 de setembro de 1964, advogado, iniciou na literatura em 1987 com Brincadeira Surrealista, poemas. Cursou Direito na Faculdade Católica de Santos. Foi finalista, com Amazônia, romance, do Prêmio Sesc 2009. Em 2012 publicou Os Bichos, romance, pela Editora Realejo. Em 2013, Companhia Brasileira de Alquimia, romance, pela Editora Patuá. Em 2014, também pela Editora Patuá, o pornoépico A Comédia de Alissia Bloom. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Escreve quinzenalmente as colunas Cais das Letras, no site http://cinezencultural.com.br/site/ e Zona de Leitura, na revista digital Pausa, http://revistapausa.blogspot.com.br/p/sobre-revista.html
Os contos abaixo integram o livro Ode ao bidê e outros contos (Editora Patuá, 2020).
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Carpe diem
para Celso de Alencar
Foi com extrema alegria e disposição que acordei sábado, às seis da manhã, rompendo um ciclo de depressões, depravações, procrastinações, dormires tarde e acordares no meio da noite. Perder a metade do primeiro dia do fim de semana não é muito justo com a poesia da gente, há que se aproveitar o dia, colher o dia. Carpe diem, diria o velho Horácio, também poeta.
A vida negocial, o acanalhamento a que somos diariamente submetidos, a falta de tempo, tudo isto, além de me fazer abandonar princípios de uma vida digna e saudável, tem mantido longe de contatos humanos mais plurais e também longe do meu sítio, minha joia rara, meu pequeno paraíso particular, que cultivo há alguns anos e para onde não me dirigia faz tempo. Aproveitando a disposição matutina de dar aquela guinada federal na vida bandida, liguei pra meu velho colaborador, Lutero Martinho da Conceição, homem simples e hábil em todas as artes, uma espécie de fac totum, pedreiro-encanador-eletricista-técnico-de-fogão-a-gás-e-a-lenha-agricultor-engenheiro-curandeiro-e-mesmo-poeta. Bora dar um talento lá no sítio, Luterão.
Topou de imediato, convenceu-me a levar sua mulher, Josefa dos Santos da Conceição, popular Zefinha, gente finíssima, colaboradora também, havia uns anos que ajudava lá em casa, assim ela fazia o rango. Beleza. Levamos também o filho, Vaguinaldson, moço duns dezoito, em tempo de servir exército, aliciado, depois o soube, por outro exército, o do crime, bem contrário ao gosto dos pais.
Lutero Martinho, o nome já o denuncia, veio criado numa família protestante. Verdade que há algum paradoxo no sobrenome Conceição, mas faz parte do caldo cultural da periferia brasileira, essa assimilação da cultura e fé norte-americanas por cima do catolicismo luso. O nome da esposa, que já vinha com um inadmissível Santos, acrescido do Conceição ficou mais antipentecostal ainda. Paciência. Harmonizaram a coisa batizando o petiz com um nome de conquistador, Vaguinaldson, quem sabe ele melhorava a geração.
Seguimos os cento e tantos quilômetros de viagem até o sítio com Vaguinaldson bastante contrariado pelo fato de eu ouvir Mozart em volume suave no CD do carro. A intuição me soprava que o rapaz era habituado a funk em altíssono, a corneta de um woofer bombando feito um bate-estacas no interior do veículo e da alma dos passageiros. Lutero e Zefinha ouviam com o mesmo estoicismo de sempre as músicas esquisitas do patrão, até louvavam meu bom gosto musical. Havia algo de falso naquilo, mas uma falsidade agradável, daquelas que se sabem feitas por obséquio, consideração a uma pessoa que-rida. As gerações do Brasil vêm piorando, pensei, a expressão do Vaguinaldson era de ódio fermentado no barril de carvalho de um coração deteriorado. Perigoso.
As amenidades de sempre segui conversando com o casal de velhos amigos, velhos parceiros, velhos colaboradores. Lutero já tinha sido homem de mamar litro de cachaça por dia, hoje, crente convicto, abominava. Josefa ajudou no processo de conversão. Eu ia provocando, falando do meu apreço pela cachaça, da minha coleção de cachaças premiadas, agora era fino beber cachaça, pingas sofisticadas de Salinas, de Cuba, dos interiores diamantinos das Gerais, dos sertões do Pernambuco mais profundo, cachaças vencedoras de concursos internacionais. Gosto dessas sofisticações no que há de mais popular. De cachaça mesmo, daquelas que o Lutero deve ter tomado aos litros, essas pingas baratas feitas em indústria e vendidas a preço menor que o da água mineral que bebo, tenho é nojo.
E então, Zefinha, que vai fazer pra nós hoje, que tal uma galinha de cabidela. Adoro galinha de cabidela, o nome que a simplória Zefinha dá a um coq au vin maravilhoso. Depois que ela sangra a bichinha, depois que ela acrescenta o sanguinho preto no molho, eu venho com um Borgonha, sem ela saber, ou fingindo que não vê, e dou aquela guaribada, aquela melhorada, um acréscimo de charme e estilo no prato, fica dez.
Zefinha e Lutero têm por mim tipo uma adoração, acham que sou seu benfeitor, vou com eles pro sítio, como na mesma mesa etc. Lutero não bebe minhas cachaças premiadas e, melhor, tem horror dos meus uísques caríssimos. Zefinha se resigna a cozinhar e me ver feliz e arrotando, cheio de cachaça, fumando um charuto e depois dormindo na rede feito um porco capado.
Estava muito, mas muito feliz de retomar a vida saudável do campo, acordar cedo, em companhia de gente simples e sincera, uma sinceridade distante, de mundos incompatíveis, mas agradável, ao menos pra mim, ao menos de cimo de onde eu mirava. Creio que pra eles também fosse, sei lá, não me importa. Pra mim era. No entanto, me parecia, ao longo do trajeto, que pro Vaguinaldson não era tão agradável assim, uma onda mútua de ódio e antipatia eu intuí entre nós dois, que pena, gostava tanto de seus pais.
A chegada ao sítio foi um tanto melancólica, a relva subida tinha tomado conta do jardim, da horta, do entorno do galinheiro, de tudo.
Teias de aranha, perigo de cobra rastejando. Abandono. Entramos, sem que eu perdesse meu humor, no que fui ajudado pela Zefinha e pelo Lutero, que louvavam o cheiro de mato, a natureza, o quanto é agradável a vida no campo, essas coisas. Zefinha já acendeu o fogão a lenha e foi caçar uma galinha gorda, Lutero tomou de uma foice e eu, constatando a falta de gêneros básicos de sobrevivência, carvão-carne- -cerveja, a churrasqueira gourmet que havia construído pra momentos de deleite em franca inatividade. Vaguinaldson, fio, tome aqui duzentos mango, vai lá no armazém me compra dois saco de carvão limão gelo uma caixa de ráinique três picanha maturada uruguaia e um maço de roliude, é cinco VV: vai e vem voando viadinho velho, hahaha.
Duas horas depois eu já tinha declamado Horácio pro casal, já tinha cantado sambas da antiga, nas versões pacificadas que aprendi de ouvir em releituras de cantores modernos, já tinha mostrado minha coleção de vinhos pra eles, a TV de led gigante, que pretendia cimentar uma parte do jardim pra botar uma cama elástica ou uma quadra de squasch, eles aprovando tudo, rindo comigo, gente boa os dois. E a fera do Vaguinaldson que não chegava.
Fui com Lutero no armazém, do lado de fora Vaguinaldson com os noias, os filhos dos camponeses do entorno, uma cambada de vaga-bundo que não tinha herdado a disposição dos pais ao labor, o tráfico dominando a zona rural, a favela urbana chegando perto, desgraça total. Vaguinaldson encontrou sua turma, ali vi que se levasse Lutero e Zefinha pra morar lá, junto com aquele marginal, minha propriedade ia acabar virando biqueira de crack. Lutero tomou pela orelha o filho, moleque malvado, vergonha da família. Voltamos pro sítio, eu dizendo, deixa o menino, é da idade, e por dentro me rejubilando, foda-se, vagabundo noia do cacete, tem que ser esculachado mesmo.
Mal aportamos na entrada do sítio, Zefinha já fazia fumegar um perfume de coq au vin, os passarinhos se aproximavam pra comer as acerolas, borboletas multicoloridas e um sol alegre, num céu sem nuvens de abril. Abracei aquela família feliz, recitei mais um tanto de Horácio. Olhei pra relva alta, olhei pra enxada pendurada ali perto, tomei da enxada e a estendi ao Vaguinaldson, na esperança de que o labor o redimisse daquela vida de vícios e o conduzisse ao caminho da submissão e da fé.
“Carpe diem, carpe, meu filho”
Ele, com uma expressão sorridente, mas preocupante, catou o cabo da ferramenta, entendendo o recado, e foi combater a relva alta, cortar o mal pela raiz. Eu, lá comigo, pensava, Carpe diem, carpe essa porra direito, filho duma puta, eu tô pagando. E preparei uma lon-ga caipirinha, sentei num tamborete a mirar o prado infinito, tanto por carpir.
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O país da intolerância
para Mariana Teixeira
Era uma vez um país M. Ficava pra lá das terras dos hiperbóreos e pra cá dos carolíngios, numa estranha pradaria situada não lembro se perto da Macedônia ou de Iperoig, mas isto não importa. O que importa é saber que tal país possuía nome tão curto e estranho (Eme), porque esta letra era o ponto comum à sua população.
Não se pense que havia uma unidade nacional e a harmonia reinasse em M. Antes muito pelo contrário, aquele país estava dividido entre dois grupos que se odiavam. Os historiadores diziam que as origens do Estado de M remontavam ao mágico tempo da criação das letras, quando Deus em pessoa veio trazer luz aos homens promovendo seu “letramento”. Atentem para esta palavra, letramento. Do verbo letrar. O povo de B odeia este verbo, diz que foi invenção do povo de P.
Naquele tempo em que Deus andava entre os homens promovendo o letramento aconteciam coisas divinas. É claro, as coisas de Deus são divinas, dã. Não riam. Era tempo das letras, não da lógica. Deus explicou que havia letras consoantes e vogais. As consoantes deviam unir com vogais mas, como o amor de Deus é livre, também se podiam unir vogais com vogais e consoantes com consoantes (mais tarde as pessoas de B inventaram que Deus proibia tais uniões, mas Ele nem se metia nisso). Explicando tais coisas, Deus viu que dois povos tinham grande afinidade, os povos de B e de P. E resolveu uni-los e criar uma nação federada, que nem Bósnia-Herzegovina, que nem Tcheco-Eslováquia ou mesmo Trinidad & Tobago. O ponto comum entre os povos B e P, o espírito de união nacional por assim dizer, era justamente a letra M. Por isso o nome do país. Deus viu que os P e os B só podiam vir precedidos de M. Não toleravam, como as demais consoantes, a letra N. A letra M era sua constituição, sua única precedência, seu pré-conceito.
Penso que fiz um grande preâmbulo pra contar uma história que é mesmo curtinha. Os povos de M (P & B), unidos pelo preconceito, odiavam-se. Sim, eram uma nação, mas se odiavam. Os P diziam que tudo que não presta é B: boi, bancada, bala, bíblia, belomonte, big brother, elencavam de uma forma que até convencia. Já os B em suas razões sustentavam o contrário, que o que não prestava (segundo as convicções deles, B) era P: pobre, preto, puta, pederasta, peão, partido político.
Como se pode ver, os de B eram bem mais estúpidos (até este narrador acaba tomando partido). Mas Deus não levou isso em conta. Irritado com a intolerância entre povos irmãos Ele mandou um dilúvio destruir o país de M. E acabou a História, porque a História só parece existir quando um povo odeia o outro.
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Sexta-feira santa
para Ellen Maria
Teve uma Semana Santa que fui pas-sar no sítio. Havia uns meses não havia porco por lá, depois que sacrificamos Chicão, o javali, meses que corresponderam ao tempo gasto pra consumir a ignorância de carne e banha que o bicho forneceu. Foram raros os períodos da minha vida que passei sem cachorro ou porco de estimação. Andava aguado por um porquinho, gosto de juntar resto de comida pra eles, analisar sua alma suína. Tão parecidos com a gente. Silvestre, o caseiro, contou que pros lados do Zé Rita tinha uma porca parida, e o dono vendia os leitões a cinquenta reais. Vamos lá.
Cheguei no sítio do Zé Rita, uma tapera abandonada, chi-queiro nos fundos, fedendo, como sói acontecer. Sempre cri-tiquei nos caipiras a maneira incivilizada com que criam os porcos, animais refinados, inteligência até superior à dos cães. Quando montei meu chiqueiro procurei atender a ino-vadores conceitos de bem viver animal. Pouco adiantou, fedeu que nem o chiqueiro do Zé Rita. Não há remédio pra escrotice suína, assim como não há pra humana.
Sexta-feira Santa, o sítio de Zé Rita abandonado, devia estar na igreja. Olhei a porca, exaurida, doze bacorinhos sugando a seiva de vida da coitada, já estavam bons de desmamar. Não quis esperar o Zé Rita, afinal o conhecia, afinal o preço era certo, cinquenta, afinal eu não ia voltar de novo naquele brejo e me sujar todo. Invadi o chiqueiro, a porca partiu pra cima, defendendo a cria, dei-lhe um bom dum chute na fuça e catei pela perna traseira o primeiro leitão à mão. O bicho esperneava, abracei com ele em luta corporal, no fim das contas eu e Silvestre conseguimos enfiá-lo num saco de estopa que jogamos no porta-malas, ainda com malas, e roupas, que ficaram, obviamente, fedendo a porco.
Quando cheguei no sítio, triste fato: o porquinho tinha mor-rido asfixiado, ou envenenado, cansei de falar pra mulher não botar naftalina nas roupas. Tristíssimo pelo fato, não descurei que devia pagar os cinquenta do Zé Rita. Nem ele. Horas depois invadiu meu sítio a caminhonete pilotada por um Zé Rita brabo, xingando geral, que aquilo era um rou-bo, que ele não queria vender, e se ele não quisesse vender e agora o porco morto, e logo aquele que era o de estima etc. Não aceitou os cinquenta reais e fomos parar na delegacia. Findo o entrevero, o delegado me convenceu a pagar cem, paguei pra me livrar. No fim de tudo, Silvestre filosofou:
“Eu queria dizer pro senhor, o senhor não deixou. Hoje é Sexta-feira Santa. Quem fez negócio nesse dia foi Judas. É maldito.”
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Céu e inferno
para Charles Marlon
Ante a perspectiva de uma hora a mais de vida e do fim dessa aberração capitalista chamada “horário de verão”, fui pro leito ontem alegrinho. A voz de um anjo, não reconheci bem, mas parecia Elizeth Cardoso, cantava aos meus ouvidos mentais:
“Bate outra vez com esperanças o meu coração pois já vai terminando o verão enfim…”
Dormi uma noite soberba, sem o maledeto do ar condicionado, que via de regra me faz acordar na madruga com o rabo gelado, o nariz seco e a garganta pedindo água. Despertei no estertor de uma alba suave qual os róseos mamilos de uma virgem ornada de flores em tons pastel, estertor este que, malgrado um dia atrás fosse hora de levantar, era-me ainda uma “seis da matina”, promissora de um soninho plus, um chorinho no copo de caipirosca. Virei pro lado com um sorriso patola, do qual aqui me pejo em público, e dormi de bruços no cetim do meu lençol. A patolada colheu o castigo devido e divino – um sonho demoníaco de calor intenso, um calor cinza e molhado feito o verão nublado, danou de me suar os cetins. Não bastasse o mal-estar do calor, uma melodia cantada pelas hostes infernais prenunciava outra estação de suplícios:
“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã mais uma vez eu sei…”
Desesperado ante o fim de meu paraíso episódico e a iminência de uma condenação eterna a ouvir porcaria no calor, logo antevi da janela da minha alcova, que dá pra prainha do Itararé, uma multidão, vinda de todo o Estado de São Paulo, tocando sertanejo universitário e fanque em altíssono, ao lado de um churrasco que era traçado à milanesa, com areia e pinga, debaixo do sol. Identifiquei o demônio que cantava logo acima, um barbudinho patolando em meio à horda, e lhe fui perguntar:
“Quem sois, ó portador da má notícia?”
Ao que me disse:
“Meu nome é Legião.”
“Sois muitos.”
“Na verdade só sou um só. Eu simultiplico porque tem uma coisa que é pior que Legião: os fã de Legião. Ó só, tão tudo ali na praia.”
“Tire suas mãos de mim que eu não pertenço a você.”
De fato, mirei novamente d’alcova a praia lotada, e eles lá, lata chapada de cerveja quente cantando ‘somos tão jovens’.
O verão não acabou. Meu velho coração volta a bater desesperançado.