Quatro contos de Mariana Cardoso Carvalho
Mariana Cardoso Carvalho nasceu em Belo Horizonte, no verão de 1997. É formada em História pela UFMG e atualmente estuda no Teatro Universitário. “Nos teus quadris de parideira”, seu livro de estreia, sai no segundo semestre pela Editora Urutau. Também tem publicações em antologias, revistas e outras plataformas literárias – como o Jornal RelevO e a Totem & Pagu.
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ÁLBUM DE FAMÍLIA
I.
Na Calábria da noite, um camponês volta para casa. As botas pesadas ferem a relva: ele marcha cinza, cumprindo com empenho o dever de estar sobre a Terra. Não é alegre, não é triste, não espera nada além de comida na mesa ao fim do dia, não tem sonhos ambiciosos quando entrega os olhos à escuridão. Só corta a lenha corta a lenha corta a lenha corta o cansaço corta o caminho corta a porta corta o corredor corta a surpresa corta a safada. As janelas dos ouvidos fechadas para explicações, Maddalena e o amante cuidadosamente espicaçados com o mesmo machado de abater árvores. Enterra os despojos. Limpa o sangue da barba. Ceia e reza pelos pecadores antes de se deitar.
II.
Recolhe o pouco dinheiro das mãos trêmulas da mãe, e a mãe chora, beija, aperta, perdoa, acena até nunca mais. Tem um oceano pela frente, fugindo de machados mais afiados do que o seu. Vingança jurada em nome do sujeito feito em pedaços. Um amante obscuro. Importante. Zoccola figlia di puttana. Corpo de Eva, mente de serpente. Pensando bem, queria tê-la matado por baixo: fodendo até desmanchar a carne.
III.
À revelia de todos os desastres, não é espantosa a existência dos canários? São bonitas estas bananas, estas águas, esta gente da cor do azeviche. Braico será Braichi. Braichi será Braighi. Braighi poderá ser, dentro de um século ou dois, Braga – com a língua e os modos e os filhos de cá. Jamais dirão ajuda-me, tenho frio, meus ossos doem, porque da boca dos novos rebentos pingará apenas mel; dirão petúnia, hibisco, manacá, libélula, bem-te-vi, querubim.
IV.
Um Big Bang + o matrimônio entre moléculas de hidrogênio e de oxigênio + seres marinhos que resolveram testar a terra + mamíferos, angiospermas e outras invenções de última geração + a pedra o fogo a palavra + o estado o exército a guerra + arrozais e rostos pintados + castanholas e atabaques + um assassinato mediterrâneo + um navio negreiro + sertões + um par de olhos kaxixós + alguém no lugar certo + alguém na hora errada + três irmãs açorianas + um perfume de incêndios + a miséria o delito a subversão + eletrochoques e ela tão triste + Coca-Cola na cidade + um sinal fechado + um céu aberto + convulsões repentinas + uma borboleta batendo asas aqui + um tornado gerado acolá + um copo lagoinha transbordando cerveja quente + um filme à toa no Pathé + a cachoeira em Buenópolis, maio de 96, cadeia de acasos que me deu uma coisa mínima: licença para nascer.
V.
Ajuda-me, tenho frio, meus ossos doem. Do esconderijo no fundo do armário do banheiro salta uma coleção recém-criada de cacos de vidro – verdes, azuis, transparentes, à mercê do humor do corte. A pele do pulso é fina, mas eu demoro. Punições devem ser desenhos bem traçados, morte sul leste oeste. Quando penso que não, ou quando penso que sim, não sei, é o sangue da mulher antiga que chove de mim. Pela ligação das desgraças, pelo pecado afim, quem, senão Maddalena, vazaria das minhas veias. Maddalena, meu e-se, passado não fecundado, mil avó sem descendentes. Eu renuncio o camponês. Só sei nascer da tua morte, Maddalena, sou o corpo sobre a cama na noite que não teve fim. Fica, Maddalena. Se você fica, eu lavo o rosto, os punhos, eu me banho e penduro flor na orelha, hem, Maddalena, non lasciarmi più, aprendi a tua língua só pra te pedir. Ninguém sai de tão longe pra morrer na praia, Maddalena. Vem tomar sol comigo. E rir na cara deles, rir da cara deles, ai, Maddalena, nós vamos rir até chorar.
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BRIGITTE BARDOT E OUTROS DIASTEMAS
Alberto Isaacson é tão pequena que não cabe fora de si. Eu só sei que Alberto Isaacson existe porque Alberto Isaacson me fez existir. Só insisto na grafia do nome por carregar um compromisso antigo com os nacos de mundo ignorados pelos mapas. E também, confesso, por me afeiçoar a esses sons extravagantes, que arranham a garganta à moda alemã, desde que um homem que amei me ensinou a retesar a língua para chamar sua tia-avó – Tante Gerda matava porcos e presenteava com palavrões em bávaro as crianças da família. Da família dele. As crianças da minha aprenderam o silêncio das vastidões. Antes de sair dos cueiros, já estudamos como despertar a manhã afogada em neblina, como assar o pão, como entranhar a bala no inimigo, como colher os tomates, como parir as filhas, como pressentir que uma delas morrerá queimada, aos poucos anos, no início das chuvas de São José – mas nada que nos comprometa a ternura, a capacidade de inclinar a cabeça desconsolada sobre um ombro e chorar todo o Rio Pará, para desaguar soluços no São Francisco. Choro é o primeiro impulso quando as vistas dão com as bordadeiras reunidas à sombra dos ipês da praça, empunhando bastidores, fios de lã e fios de luz, e flocos de flores brancas caem por cima delas, coroando os coques construídos com grampos, sossegando a poeira que se agita na terra vermelha: natas de paz sobre o sangue derramado dos homens. Tudo o que é vivo aqui é vivo demais, por isso dói. Dói até o que já é meio morto. Mesmo com jeito de coisa moribunda, a casa em frente à praça e aos ipês continua respirando forte no fundo de mim. Intacta. Conserva, além do muro baixo e das janelas azul-desejo, o hálito familiar das fêmeas que emulhereceram entre uma dúzia de paredes caiadas. Voltar a Alberto Isaacson depois de uma vida citadina, toda fumaça e aço, é investigar o avesso do bordado: o nascimento de quem me fez nascer. Corro as mãos pelo dorso das vigas, encosto a testa na pele das portas, e as carícias são retribuídas. Quando me recolho e abandono ao catre estreito o peso do corpo, sinto que a casa me amacia a noite. O chão faz a cama beijar cada nó dos meus músculos, a lâmpada apagada parece um pequeno sol adormecido. Não trago dedos bastantes para calcular quanta gente, ao longo do tempo, fixou os olhos no mesmo teto sem forro em que eu me demoro. Um gesto milenar. É importante ter céu próprio, especialmente durante as horas nubladas. Na ausência de vontade ou de faca na cabeceira, instruiu a avó, o melhor a ser feito quando um homem se remexe dentro da gente é torcer para que termine logo. Escolher um ponto no teto, cravar os olhos, pensar em uma coisa bonita – uma radionovela, um véu de renda, um bezerro brincando na fímbria do mato. Escolher outro ponto no teto, cravar os olhos com mais rancor, mais, está quase acabando, pensar em um problema para amanhã – a roupa suja acumulada, as telhas quebradas na cozinha, os armários cada vez mais desertos. Se arreganhar os lábios for preciso, esculpindo no rosto uma carranca, não esquecer a forma certa de puxar e soltar o ar por entre os dentes. Há muitos anos, dentro da mesma casa, eu me lembro de subir em um banco para alcançar o espelho do banheiro e dedicar uma tarde inteira ao exame do espaço engraçado na minha boca, idêntico ao das bocas das primas, das tias, da mãe, da avó. Perguntei a ela por que nós nascemos com um vão no meio dos incisivos. “Pra ajudar a engolir desaforo. Às vezes tem que engolir.” Passou uma mulher em preto e branco na televisão, horas depois. Embora os dentes fossem separados, o vestido era indócil demais para Alberto Isaacson. Incompatível com qualquer sujeição. Expliquei minhas razões, comuniquei à avó: eu quero ser ela. A matriarca riu, satisfeita. “É que você já veio com os dentes mais juntinhos.” Aqui, no colo daquele anúncio, acabo de escolher um ponto no teto e cravar nele os olhos, enquanto celebro a ausência de um corpo ofegante sobre o meu. O muro baixo, as janelas azul-desejo, o catre estreito – tudo é alívio quando raia, no bojo da noite, um clarão súbito nas paredes. Conto em voz alta que fiz amizade com o breu. Estamos bem. A casa é banguela, mas sorri.
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PIETÀ
Os amigos da rua receberam o vídeo pelo WhastApp. Para quê? A velha não quer ver. Precisou que ninguém dissesse sinto-muito, já havia antecipado em sonho o caminhão esmagado. Os pés metidos nos chinelos desde o fim da noite, ao som da introdução do Globo Repórter, esperavam só as batidas no portão. Vieram às quatro da manhã. Em vigília do lado de fora, uma pequena multidão quase recorreu ao par ou ímpar para decidir quem daria a notícia. “Eu sei. Morreu, não morreu?” Quase. “Desencarnou, mãe.” Aceitaria tudo, um copo d’água com açúcar, alguém querendo tutelar seu luto, até condolências da ex-amante do marido aceitaria, mas a tentativa de consolo da caçula espírita é demais. Com rapidez de leoa ferida, veste um penhoar sobre a camisola floridinha e atravessa correndo – agora não importa quantas décadas tem seu fêmur – o umbral da casa. O bando reunido mal consegue piscar, porque perda é coisa que constrange todos os gestos. Lá vai a velha, acompanhada em silêncio por seu séquito, subindo a rua com as faces secas, que chorar é desperdício, e o passo ligeiro de quem detesta adiar tarefa. É uma loucura pragmática, a dela. Toma esquerdas e direitas, passa pelos motéis enfileirados, pela loja de ração, pela padaria que já deve ter empregado os ratos e as baratas na fabricação dos pães do sábado. Se existisse o fim do mundo, um canto para marcar no mapa onde foram perdidas as botas de Judas, ou a borda de um planeta quadrado cuspindo monstros nas esquinas, como temia a homarada nos navios, ela tem certeza de que seria este, mesmo tão longe do mar: o Carvalho de Brito. Um dia, até passou por aqui a Central do Brasil, com trens levando e deixando um povaréu na estação General Carneiro. (Toda triangular, não tinha janelas, só portas, muitas portas, nove portas imensas de cada lado do triângulo, e mais uma cúpula que filtrava o sol e iluminava os cabelos das namoradas de luvas e sombrinhas, quando era possível a existência de namoradas de luvas e sombrinhas.) Mas isso foi um dia. Não são nem cinco horas, a nação dorme sem importunar seus mortos: ignora que existiu um Carvalho de Brito, que existiu um General Carneiro, que existiu alguma moça com os olhos ansiosos nos trilhos, que existiu até agorinha mesmo o filho de uma mãe, um que acaba de ser retirado das ferragens. Depois das ferrovias, as rodovias. Depois das rodovias, os caminhoneiros. Depois dos caminhoneiros, os caixões cobertos com bandeiras do Galo. A velha sabe que poderia ter sido em qualquer parte. Em Petrolina, no mês passado, antes dele trazer um colar de contas para cada sobrinha. Em Feira de Santana. Em Blumenau. Acontece que alguns homens buscam morrer perto de casa. Caçam colo. É o que explica aos bombeiros em tom de ordem, proibindo que ensaquem o cadáver ao lado dos destroços – eu fiz ele uma vez, gente, faço de novo. Ninguém desautoriza, ninguém eleva a voz quando é Nossa Senhora quem fala. Devagar, como deve ser o início de toda liturgia, ela se senta ao lado do corpo. Começa se ajoelhando, apoia o peso nos calcanhares, tomba para o lado e estica as pernas à frente. Está pronta a cama. Puxa sua cria pelas axilas e aninha a cabeça no macio das coxas. Aqui e ali faltam porções do crânio esfacelado, mas ela recolhe os nacos de carne que vê ao redor e enxerta um por um, estudando onde cabe melhor cada pedaço. Fecha os olhos vidrados e a boca de dentes ausentes, limpa com a ponta do penhoar o sangue quase seco do nariz, das têmporas, das maçãs do rosto. O útero da velha engendra o filho do lado de fora, fazendo a vida de trás para frente, uma vitrola tocando ao contrário. O útero da velha são as mãos. A camisa foi rasgada no peito e nos ombros, uma pena não ter trazido a caixa de costura, que também serviria para reparar o lanho fundo no abdômen e esconder o osso se insinuando perna afora. No mais, está perfeito. Como é bonito o seu bebê. Como é cheiroso o cabelo, mesmo com fumaça e gasolina. Ela beija as unhas roídas e conta um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez dedos nas mãos e dez dedos nos pés. Perfeito, sim, como no dia em que nasceu – e meio século depois, é tempo de nascer novamente. Tudo do começo. A alvorada, vinda do outro lado, já caiu sobre os motéis, sobre a loja de ração, sobre a padaria, sobre a estação, e alcança o grupo atônito em volta do acidente no momento exato em que a velha mete o peito na boca rasgada do filho e balança um boi, boi, boi, boi da cara preta. Há quem diga que algo branco acaba de se derramar sobre o vermelho. Há quem diga que o menino, luzindo a manhã, engole.
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ÉDIPO
Quando me visita, o meu amor vasculha todos os cômodos em busca de não sei o quê. Mesmo se descalça os sapatos na soleira da porta, pede licença e abaixa a cabeça, ciente do sagrado da casa que adentra, eu vejo que procura, na cor das paredes ou na disposição da mobília, qualquer coisa fundamental. Qualquer coisa que me escapa. Hoje, no almoço, a mãe do meu amor disse
a neta de Nena engoliu um alfinete.
E o meu amor sorriu, mais satisfeito com o incidente infantil do que com o banquete que eu punha na mesa. Tudo para sublinhar a ausência de um artigo definido antes do nome. Saindo da minha boca, a notícia seria
a neta da Nena engoliu um alfinete.
Porque é o modo da minha terra, mais ao sul do Equador do que a terra da mãe do meu amor. Quando me visita, o meu amor quer limar os artigos da minha língua? Quer que passeie pela sua boca, no sublime da noite, a língua da mãe? Quando me visita, o meu amor se empenha em voltar ao prólogo do mundo, ao primeiro lar. Daí o desamparo: ao se debater no salão da casa, o meu amor percebe que não me pode habitar como habitou, nove meses sem fim, o avesso de outra mulher. O que pode é perpetuar a vingança, recomeçar a espécie neste ventre – quando visitar o seu amor, assim, o meu filho pensará que retorna a mim.