Quatro contos e um fragmento de romance de Flávio Viegas Amoreira
Flávio Viegas Amoreira: escritor, poeta, jornalista e crítico literário, já publicou 14 livros entre poesia, contos e romance, sendo os mais destacados: Maralto (2001), A biblioteca submergida (2002), Escorbuto, Cantos da Costa (2005), Contogramas (2006) e Edoardo, o Ele de nós (2007), todos pela 7 Letras Editora do Rio de Janeiro, bem como O vazio refletido na luz do nada (2015) e Desaforismos & Tramas de Metrô pela Editora Kazuá de São Paulo. O autor foi inserido na antologia Geração Zero Zero, reunião dos considerados mais relevantes contistas da primeira década no Brasil, organizada pelo crítico Nelson de Oliveira em 2011. O escritor colabora com vários jornais brasileiros especialmente dirigidos ao publico literário e é colaborador faz 20 do jornal “A Tribuna” de Santos. Traduzido e adotado por universidades norte-americanas e portuguesas, atua como agitador cultural entre São Paulo e o litoral paulista, sendo parceiro de artistas de outras áreas, como letrista de composições de Gilberto Mendes e ao lado de artistas plásticos como o xilogravurista Fabrício Lopez. O poeta atua também em sites, blogs, revistas digitais e é considerado das mais inventivas vozes da vanguarda literária nacional. Radialista, atua também como crítico de cinema e teatro. Nasceu em Santos em 1965 onde reside alternado com vida profissional paulistana. O autor atua como mestre oficineiro faz 15 anos, especialmente ministrando aulas no sistema Sesc no Estado de São Paulo, com maior atuação no Sesc Santos, nas oficinas da Casa das Rosas mensalmente, na Pinacoteca Benedicto Calixto de Santos, na Biblioteca Alceu Amoroso Lima da Prefeitura de São Paulo, na Oficina das Casas Mário de Andrade e Guilherme de Almeida na capital paulista, bem como no Forum da Cidadania de Santos . Detentor de um método específico de pedagogia literária, já atuou também em oficina literária na Cadeia Velha de Santos. Lançou dois livros pela Editora Imaginário Coletivo: Pessoa doutra margem, poema longo dedicado a Fernando Pessoa e Whitman, meu brother, poema ao bicentenário de Walt Whitman em 2019.
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O indigitado
Um sábado abrasador. A temporada anunciava o êxodo dos forasteiros para ganhar o sol. Podia sentir o serpentear dos milhares de carro pela estrada do mar. Embalara o lixo reciclável com esmero de artesão. Duas voltas para amarrar bem e conter qualquer vestígio do cheiro de peixe. O burburinho da debandada ao redor soava meio dia no horário de verão. Separados os jornais, um volume de contos de Maupassant, programado um western de Leone para começo da noite, talvez uma cerveja por perto a noite…. Desde que Peter partira não tivera mais ninguém, – não com aquela exclusividade. Não que tivessem morado juntos, mesmo assim sentia-se compromissado com alguma rotina a dois. A porta da lixeira fechava-se 14 horas e esperava deixar a cozinha limpa. O prédio de quinze andares era ocupado por idosos, casais recém casados e alguns apartamentos de temporada. Nada conste tivesse grandes amigos por ali. Só no bar padaria lanchonete juntavam se conhecidos que aproximavam mais por conversa fora que afinidade. Atmosfera de maresia, – terminado almoço queria só a janela escancarada do segundo andar tomar a fresca do seu quarto naquele canto modorrento do mundo. Todos resíduos do almoço de solteiro básico antes da folga do faxineiro. A pino o mormaço convidava para a rua. Uma cerveja ver o bronzeado passar. Horácio sente cheiro de molho de tomate e o latido denunciador ao abrir a porta. O corredor escuro, alguma brisa gelada e expectante dum lince urbano e alguns passos delicados descendo pelos fundos. A clarabóia lateral do prédio turvara seu movimento enquanto seu chinelo escapara exitante ao segurar a porta. Fixou num ponto impreciso entre o corrimão e o último lance em direção ao seu andar. Era Ofélia o imponderável depois de três anos sem notícias. Ofélia nome vetusto para aquela feição de Mata Hari.
– Você morando aqui Horácio, no mesmo prédio onde vieram morar meus pais? – com sorriso solto sem esboçar nenhum drama.
– Desde aquela vez no barzinho da Augusta, esqueceu que dissera? – pousando o lixo, o jeito, o inusitado do corpo.
– Tô nessa loucura de exposição, pensei em ti, não estou usando rede social, não sabia se gostaria me rever….
– Pois é a vida é o que sempre acontece….. (risos desinibidos enfim) voltei pra cá para ter o mar como moldura: lendo loucamente, escrevendo sem cessar e sem loucura de Sampa que me desenergizava.
– Você continua zen… então agora vou dar um mergulho e espero me convide para entrar mais tarde…..
– Claro! Hoje não saio mesmo ou no máximo por perto padaria boteco de esquina petisco para a noite…. fechado! te espero: vinho ou cerveja?
– Colocar conversa em dia é cerveja mesmo…beijo!
Sem pretensão de recomeço aquele reencontro tinha toda cara de remissão. Colocara uma roupa mais estampada, algum tempo aquele homem melancólico por ofício se tornara mais solar. Horácio enfim encarara o advento abrupto de Ofélia em seu destino com uma tranqüilidade e despojamento incomuns.
– Pois é (o inefável refrão de pausa entre nós), – eu voltei a esse canto para reinventar algo…
– Sei, voltou depois de Bruno…. pelo menos eu não tive tempo de perdê-lo para a morte, perdi antes para ti
– Bom… agora empatamos né? Foi de fuder no começo, eu lutei feito louco para viver com ele e agora esse percurso doido….
Provolone com salame hamburguês, olhavam a brisa, combinaram outra cerveja noutra noite, os pais dela estavam bem, não ficara nenhuma ferida, tudo zerado, dormiram abraçados, tentaram sexo, ficaram nos amassos, gozaram juntos claro Bruno vibrara em algum canto do universo…
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O aplicativo
Uma noite no começo do verão e me angustiam sempre as estradas que saem das marginais, grandes serpentes que envolvem a cidade já ao longe, uma angústia desbravadora de quem parte para amplidão. Quando menino que fascínio assustador pela Avenida do Estado soturna ao alvorecer. Para onde esse caminho que se solta da metrópole acolhedora? No lavabo ainda pensava em voz alta: – Tenho que ir a Alphaville nesse jantar marcar presença fazer media vez ser visto quem sabe um novo contrato para agência captação de recursos uma franquia sulcoreana ser apresentada a um CEO de Xangai cavar fim de semana em Comandatuba e saber a quantas andam a conta da WOcompany para 2019…. 21 horas e preciso chamar o Uber sozinho sem medo nem refém da violência foda-se que preciso voltar são na boca da madrugada: ´boca da madrugada´ ando pensando em forma de poesia! Moema Campo Belo por esse caminho sem erro: Bruna aguardo em dez minutos um Siena cinza motorista Beto com toda imprecisão que ronda os aplicativos sem nenhuma formalidade dos velhos táxis de cooperativas ou nos pontos da esquina da padaria onde tudo conspira para uma noite tranqüila. Entra rápido passa endereço e mal dá pelo motorista na contraluz, o essencial e ganha as ruas que levam ao mais possível até o rodoanel. Uma geral: bolsa prática, dois celulares miúdos, olhar sem estorvo, nada inconcluso, ajeitar-se e seguir o compromisso pensado prazer. Cumprimentei sem olhar só depois percebi de relance o grisalho trouxe tanto quanto familiar do meu mundo em Jundiaí a primeira vez no cinema Alvorada também tinha sido a primeira vez que sabia possível carícias com outro menino e que só no escuro ele permitia tocá-lo em segurança e que nunca mais as coisas seriam iguais gostando ou não eu seria ´o diferente´. Lógico que sem constrangimento ele me reconheceu súbito sorrimos com felicidade sincera provando o provérbio tolo e verdadeiro ser o mundo pequeno e a tal porra do destino dando voltas para nos encontrar tranqüilos sobre os temores bestas. Beto Beto! trocaria a porra do jantar família empresa não por tesão tardio mas por algo legítimo feito a ´madeleine´ do tempo resgatado por sua pele contando estória do tanto vivido e o que ele me contaria como resolveu seu lance também família filhos e compromissos não tão soltos quanto os prazeres gozozos sem vínculos que não o lúdico de nossos impulsos. O lusco fusco dos sinaleiros e uma harmonia imprecisa deu me vontade parar e ir para o banco da frente. Sem mais trocamos números de whatsapp para retomar contato. Pensei comigo que esse não era um enredo dum conto bizarro de Dalton Trevisan e eu passei a noite finalmente sentindo ter um lugar para voltar.
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O lance perfeito
Serpenteava pela Frei Caneca pensando o que é uma cidade? O que faz pensar que uma cidade é aquilo que vejo? Não será a cidade por onde Artur passa e onde imagino estar Artur bebericando sem minha espera, olhando as garotas, fumando sem tédio por minha ausência? Parei de pensá-lo, ele voltou para Santos, surfando e agora retomo inventar outra metrópole. Sinuosa essa rua por quem ninguém dava nada e se inventa. Um lugar são as pessoas que cruzam, cada boteco partícula dessa metáfora. Como a lembrança do pau de Artur, sua bunda com marca de sunga, o filete de caipiroska na baba pelo peito cabeludo. Não tão desatento com entorno : ´´Por quê São Paulo não é tão conhecida nesse mundo?´´ ´´Será por estar em latitude meridiano fora de mão?´´ Mesmo sem Artur por perto havia ali um despenhadeiro vale um platô onde meteram imensa avenida: mais um pouco iria me encontrar com Fiducia, eu sem jeito com as mulheres, eu sem assunto com as mulheres, sem nenhuma astúcia com esse outra metade de toda gente do planeta. Por amor a Artur procurava por Fiducia. Notava com a pressa estar com casaco puído, os sapatos com alguma lama seca, não tivera tempo se deter no seu aspecto, seu estilo não era de afetação no trato e tinha largado qualquer contato social estiloso. Era só despojamento. No fone de ouvido uma sonata de Mozart, por trás o vão do Masp, um café ralo ainda no hálito, – eu poderia ter pego um táxi, comeria o caminho e essa ansiedade, não correria risco de assalto, agora foda-se todo medo, meus créditos de celular, essa porra de guarda-chuva é um saco! Ansiava pelo verão quando estaria livre dessa terra íngreme, solto e só com Artur numa praia abafada de gente e sensações onde pegar o dia a noite mesmo não indo além do mar em frente ao burburinho. Como começar com Fiducia? Ela entretida com o deplorável mercado de estilo, moda, galerias, objetos fortuitos e me dizendo sobre os dotes de Artur para a passarela, as vernissages, tudo aquilo de que se compõem uma ´saison´ ? para mim que o criara como um filho decifrando os criptogramas da Divina Comédia? Os vinis de Chet Baker? Paciência da porra ouvir Fiducia e sua ignorância reflexa sobre o mundo dos homens…. Porque levaria esse recado que recomporia seu amor ? que Arthur estava pronto retomar o namoro com uma imbecil de grife? Essa que o arrastava a baladas sertanejas regadas de gim de terceira? Por uma buceta trocaria nossas noites de Bach entre rodadas de ´rabo de galo´ em meu quarto sala entulhado da melhor poesia de Whitman? Não! não seria esse Hermes das encruzilhadas do Baixo Augusta…. Três meses de não resposta e ela o esqueceria naturalmente na primeira temporada de Aspen! Não seria esse Pigmalião por tudo a perder em nome do bom mocismo esquálido das novas gerações! Entrei no bom e velho saguão no Hotel Jaraguá para filar seu banheiro decente entre mulheres de burkas e caipiras exitantes no saguão que guarda ainda algum charme de Errol Flyn…. piquei o bilhete em pedaços felinos e fui curtir a madrugada comendo o melhor sanduíche de pernil do mundo no Estadão…. aqueles livros ensebados que folheava já guardados para Arthur e seu futuro simbolista de hipster suburbano….
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Ela punha os olhos no infinito
Começo da década de 70, o fusquinha descia a serra do mar caminho mais batido na alma de brasileiros do sul; espocar de fogos por algum jogo do Brasil tricampeão do mundo, ele fumava feito louco, parara numa birosca na altura de São Bernardo, era outono e alguma neblina pensando na volta para casa depois de resolver assuntos na reforma da casa de praia. A mulher refeita de longa turnée por Las Vegas era apaixonada, nunca abandonou marido e filho, a macarronada de domingo, os amigos de juventude, os hábitos de anônima dona de casa por prazer depois das luzes do estrelato, vida dupla, talvez única, a ribalta, os shows, as viagens internacionais é que eram hiato ao lar doce lar verdadeiro. Uma artista não deve casar com artista, dizia sobraçando a corbeille de jacintos, da porta para dentro quero mesmo é cafuné do filhote e atenção do Altino. Variantes, peruas kombis, algumas carretas vindas do Cubatão, o horizonte despido do mar e as luzinhas de Santos, São Vicente, Guarujá anunciadas na curva da onça. O menino de kichute, o guaraná caçulinhas, a Antarctica faixa azul, Lana de bobes, a empregada meio irmã de tanto anos separava ingridientes para a feijoada de sábado e a muralha ficara para trás entre os chevolets que cruzavam seu caminho até o Itararé, alguns sons da boites, inferninhos da divisa e alguns casais trepando na Ilha Porchat inóspita. E Lana repassando agenda de junho: Copacabana Palace, Cassino do Estoril, Canecão, Baiuça, algum espetáculo em Roma e retorno em agosto para aniversário de Tavinho, 18 anos se comemora grande e ela pensava em férias até novembro, afinal um marido é um marido. Ouvia-se nalgum tocafita alguma canção de Walter Franco, namorados pelas escarpas com pés na água, Altino com ganas voltar prá casa, instruções ao caseiro, umas cervejas no bar antes de pegar a estrada são e saudoso. Lana conseguiu chamá-lo na vizinha pedindo levasse caranguejo fresco e bananadas da ponte pênsil não abusasse do horário, teriam visita no dia seguinte…passava da hora, ela já esperava sofregamente, seria assim preciso sofregamente…. cabelos loiros, laquê, camisola, os ternos tomando ar, a janela esperava, o portão primeiro esperava, a luz entrando pelo box esperava, o filho já inquieto esperava, o carro comia estrada, os túneis da Anchieta, a represa, os barrancos de ipês amarelos, os vendedores de cocada, um solo de Miles Davis num motel de estrada improvável solo de ´´Big Fun´´ rolando em cubos de gelo, algum gado beirando o asfalto, meninos em campinhos margeando a fileira de eucaliptos, Altino ficara para trás, as horas contadas, nenhum telefonema, as primeiras providências, mas para que desespero são onze horas da noite e nenhum sinal porque as vezes tudo sem resposta mesmo…..um vinho seco não era o momento, avisar o filho da demora ainda poderia ser alarmismo, começava pensar nos anos de casamento, na luta para conciliar carreira e amor, nunca esticava porque sabia o marido esperando, nunca alguma escala que não fosse seu repouso, Altino era para quem cantava, o estímulo ao arrebatamento, a lamúria fingida, o falsete, a fossa, o cotovelo, o desvario e agora seu real desespero….onde Altino naquela madrugada? Buscava na garoa, sondava a maresia longínqua, as manobras do cais de Santos, os pedágios, as vicinais, as marginais, os comboios, os contornos, viadutos, onde Altino cinco da manhã, fez cinco anos sem Altino, vinte anos sem Altino, sem óbito, sem casamento, sem documentos, sem direitos de partilha, compra e venda, sem acesso aos bens, sem marido, sem amor, onde Altino passados trinta anos ? Metade da sua vida manca, oca, muda, amputada de resposta, negada de sentido…. Lana morreu de lágrima, mirando uma esquina, qualquer curva, toda aurora muda.
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Memórias dum astronauta – fragmento de romance
Foi nessa casa o nascimento, o homem a lua, maio de 1968, Woodstock, ocaso da democracia e ascensão de Nixon,- meu coelhinho azul encontrado rasgado numa tarde de verão, a descoberta do meu corpo e da poesia que o dilacera e fascina. Sabia me escritor antes de homem talvez e tudo isso tenha ficado gozozamente embaçado quando agora me sinto mais e mais atmosfera e lance de dados do tempo…. meu coelhinho esfarrado pelas vísceras foi a descoberta da crueldade;- o afogamento dum jovem vizinho distante vislumbramento da morte, o irremediável dos desenlaces: aquela época o sofrimento era exposto sem assepsia, levavam crianças a velórios. ´´Recreio´´, – que estranho nome para um navio encalhado….em estado de criatura, solto, tão sozinho agora quanto a casa que visito despida, nua de outros atributos que não nossa sozinhez confrontada: janelas sem temor de segurança e uso premente: jardins por fazer assim feito minha barba nesse verão acre, que nada me permite além a entrega até a razão pura, essa sacralidade da mirada desnuda….. minha primeira madeleine foi bolacha Maria: odor de hortelã e capim cidreira misturados a maresia: o taxista me espera curioso: que fetiche permanente por chauferes de praça! Recobro nesse mesmo portão agora enferrujada a palidez surpresa quando recebi uns dos meus primeiros casos amorosos: não amante! O primeiro a me foder na saída das aulas: todo sexo do mundo ficava distante da minha rua: sempre denunciei no rosto a pudicícia dos jovens pederastas….. até hoje me persegue a calidez da porra no guarda pó que me envolvia depois daquelas coxas. Ouço ainda quando volto a vista entre a brisa e essa canícula de verão brasileiro o som de nossos corpos adolescentes espremidos nos fundos dum prédio de três andares sem movimento evidente além de nossa cumplicidade: ele me fodendo sôfregamente me tomando sua posse de machinho encardido: era tanto gozo contido eu que nem sabia ainda que também poderia ganhar a mesma umidade vulcânica com aquilo tudo e era tudo minha culpa minha só culpa ruborizado pela rua feito puto para o mundo adverso dalí prá frente….longe de ser detentor da beleza apolínea dos outros rapazes que amava: era ele o que me fodia, secamente, nada indômito nas escapadas que esperava com ardor e penitência. As tardes do passado interminavam para meu torpor de adolescente sem amor mas possuído numa forma de desejo desconhecida de tudo que via ao redor. Tudo conspirava para me afastar dentro de meus temores de ser descoberto: vivia para uma clandestinidade forçada: a hora do ângelus escutava a reza pela rádio quando minha avó chamava para a sopa: não sem algum nojo pecaminoso ruminava aquele meu hálito renovado. Aguardo espreitando a antológica chuva fina boa para qualquer romance, observo sem atenção Yoda fazer uma limpeza rápida em meus aposentos: há uma fenda úmida onde extraí um dente e posso sentir o gosto agridoce da mais recente ejaculação nesse hábito raríssimo e intimidade única com Bob de passagem por aqui na temporada de verão…. Não sei se perdi totalmente a fé nos homens, ainda que tão cedo tenha me tornado cínico, sem uma crença totalizante…. nunca fui onde a festa estava….. por vezes uma conversa amistosa com o porteiro é o máximo antes de me enfurnar em meu quarto: para onde vejo o passado da minha janela e duvida se sinto ou não falta de algo….. habituamo-nos ao provisório dando ares de algum destino…. no meu caso a literatura foi única certeza entremeada dalgum sexo carinhoso….. a idade me tornou mais feminino: ando carecendo de significados. O esplendor de qualquer paisagem que leve ao mar foi modo de acariciar os animais domésticos….. tenho olhar lascivo…. rememorar tem sido esforço físico, estiva. Só alcancei amplidão na maturidade: o dobrar de palmeiras no poente, a minúcia dos pêlos pubianos dum rapaz ruivo inesquecido por meus lábios: ainda tenho sensação da delicada porra entre um dente extraído: foi um homem casado inadaptado para o pecado. Seu jato representa minha madaleine. Releio Proust anualmente: aprimora primícias de minha pederastia. Aquele anjo da juventude hoje se porta compassivo: o infinito, o além, Deus qualquer que seja não pode ser censor do meu desejo por rapazes. Santifico me.
Os quintais crescem com o tempo, assim como os mortos que se avolumam na memória desse pátio longo: onde os contemporâneos de ontem? Com tempo todo absurdo é consentido: flor silenciosa. Ainda a pouco senti jato de esperma dum amante na maturidade sem termo: fenômeno inaudito para mim que observava o sêmen de maneira espantosa. Revolvo minha memorabilia mental e percebo que o fascínio pelo masculino me é atemporal: magicamente inato: menino fiquei fascinado por John Derek em ´´Os dez mandamentos´´: a possibilidade para um gayzinho iniciante ver um dorso nu era só mesmo em filmes bíblicos….. tanto me identifico com Manuel Puig! O artista, o poeta em especial foi sempre o primeiro pelourinho da sociedade: quão bizarro sentia-me pelo prazer e seus contornos imprevisíveis…igual a face da natureza, evidente e sem definição….sentir o Bolha me envolver sacanamente e abraçar me tocando meus mamilos incipientes era me tão encantador quanto gazetear toda manhã naquela biblioteca que era meu sonho imortal…. meu desejo sempre me fez sentir culpado: confissão simples permeada de aspectos noturnos. Eu estabanado, distraído, torpemente pálido ou suspeito no avulso das coisas: tudo parecia denunciar minhas impropriedades luxuriosas. Restituia minha nobreza assistindo ´´Aventura na África´´ e observando ademanes de Katherine Hepburn, bem como primeiros indícios do conflito com o pai….. torcer contra seu time, desqualificá-lo em sua inteligência, desfazê lo nas reuniões comezinhas de família… nunca me compreendi com a alvorada. lunar. Eram tempos estelares aqueles da Apolo 11. Luigi agora que te conheço posso te contar melhor detalhes que quando são repartidos se redimensionam e encontro um sentido só por isso contar o que está por escrito. Minha solar adolescência: radiosa pelo enfrentamento que agora meu ilumina passado torpor…. Nesse fim de tarde recolhi todos temores e fui cuidar de minhas plantas na área de serviço desse conjugado estreito onde tento enquadrar a velha casa da infância: hoje sou mais senhor dos desejos ou a s possibilidades deles são tão exíguas que não mais me torturam….a presença masculina sempre me pacificou: músculos, firmeza de decisão, tolo mesmo consinto um homem armário corresponder todas minhas pendências: seus dedos parecem corresponder seu pau, as tatuagens que se distendem pelos ombros avultados, renasce em mim ´´Rocky o Lutador´´ para meus braços ou ´´Indiana Jones´´: por ele saí do cinema querendo me tornar arqueólogo. Me torcia naquelas madrugadas sôfrego elocubrando missões no Magreb junto com Harrison Ford….creio ter sido Tibério ou Claudio imperador que freqüentava a Gruta de Capri chupando seus lindos rapazes dizendo sugar os bagos de uvas: a felação entrega intimidade máxima! Penso em Bob no Village a ler minhas intimidades: mais um Manuel Puig? Que apelo em todas minhas libações as fontes de Roma: minha abordagem langorosa de operários noturnos…. Bicho raro numa crosta obscura: sensível em meio a bruteza lívida. Um homem de meia idade a espreitar a cidade silente durante a noite vazia: hoje sou aquele escritor bebericando pensando em tudo que antes era pecado. Ando a ler Chesterton que me foi tão indicado desde que me conheço leitor e me era inacessível por um suposto hermetismo por preços, dificuldade de encontrá-lo em sebos do centro…. os sebos, os hotéis, as composições de trens e metrôs: foram sempre espaço de fantasia: atmosferas lúbricas…sei lá por onde andou sempre meu prazer pela disposição das coisas…..alternava personagens: palhaço de Deus ou balão cativo…. os balões de gás fugidios quanta perplexidade em sua distância do quintal azulejado com um sol centrado no jardim de âmbar dessa memória…por esses dias vibrei pela vida através do meu cu essa mucosa disposta sempre por tocar o âmago das coisas. Disse ainda essa semana para Bob: que importa quão insignificantes somos para o infinito ou diante história da humanidade!? Estivemos no centro de algumas decisões: a queda do Muro, o surgimento da Aids, a queda das torres gêmeas entrecortando nossas trepadas e todo temor conseqüente num mundo incerto infecto onde nossos rabos poderiam estar encostando demais num perigo sem volta…. foram tantas vidas contidas nessa aparente placidez sem transporte: meus dias foram tão inquieto por dentro…. meus ancestrais todos vieram doutra margem: sempre insular diante o mar selvagem: não sei me situar sem um horizonte difuso. Pendo ao abstrato tamanho que preciso recorrer a imagem para recolher estilhaços. Observo acariciando o pau de Bob para rememorar sua proximidade com todos paus distintos por mim chupados: me sereniza esse contato definidor. Ah! que preciso vislumbrar os matizes do sexo de Bob ouvindo Schubert não em lied, ao piano adágio….quando menino os vagões dum trem decadente serpenteava as gargantas da serra com suas bromélias pendendo pelo vidraçado tosco onde meu rosto tomava o vento cortante da bruma…. penugem primitiva da serra atlântica costeando meu destino: o descanso da criação sempre foi carícia. Mesma pulsão germina. Sua avaliação dos poemas tem a sorte múltipla da ambigüidade. Não é feito de cacos o poema repousado? Pelo corpo trespassado por peixes translúcidos. Gosto de zanzar pela sala em torno de Bob. Sabedor de cor alguns sonetos de Shakespeare abraço o sobre seu peito de urso: ´´Exausto da labuta / para meu leito me apresso / mas logo uma jornada se inicia em meu cérebro….´´ Beijo sua tatuagem: quão distante era hábito só de marujos no cais de minha terra tatuados para ousadia dos hábitos. Nenhuma naturalidade maior que dois homens despidos: por essa noite os deuses estavam entediados e cabia a nós inventarmos um outro espaço do tempo. Ter um amor que não canse nunca a conversa: nosso amor é essa solução antitédio. Bob entrelaçado agora proporcionava minha manhã lúcida: isso! Poder acordar e ver a manhã lúcida através do ajanelado dessa prédio art decó ao fim da avenida. Eram seus ombros, seus ombros! E a noite zunia minha infância naquele pé direito alto com apitos de navios & travessuras de trens em composições soltas pela madrugada de nossos membros arreganhados…um burburinho rente ao descampado era uma festa dessas babacas de família e empresa enquanto eu trepava com todos meus anos de desesperança sobre seus ombros inclementes….com pão e botas possantes encetei meu rumo diante o destino por outro corpo arfante….cheguei até aqui sem ter fugido com o circo, entrado para um seminário menor ou virado hare krisnha por ser ao lado de poeta um pe-de-ras-ta! Como gritavam os personagens rodriguianos e os velhos inspetores de aluno do ginásio, o onipresente bedel da adolescência ou ´perobo´ para os colegas escrotos….foi tanta mudança de cenário de mundo que não consigo olhar para trás sem tremer….as madrugadas povoadas de Betty Davis & Gloria Swanson me faziam sonhar ser megera! Peneirando tudo agora com tesão literário sentido e desejo: – sou tão mais inteiro mesmo despovoado de toda gente antiga que me moldaram para ser rearranjando ao meu jeito. Isso que denominamos mundo em que vivemos dentro desse infinito que não sabemos e pensamos universo? Buscar agora na memória ser uma aparição não uma realidade constante. Conquista da solidão sem apego. Talvez agora só teu sexo arreganhado e um bocado de carinho sem aporrinhação. Está tudo montado agora poliedro. Inconcludente, soa o sinal estridente para o recreio e corro ao pátio antes das classes dispersas em grupos, – entro para a biblioteca que me esperava sozinho. Não se vira adulto aos bandos: uma experiência seguir rumo ao futuro distintos mesmo contemporâneos em algum tempo do caminho. Talvez ter nascido escritor tenha me feito assim sentir imprestável… quando agora rememoro ouço Vera Lynn e releio Lezama Lima: quem senão um pederasta tropical ouviria uma ´dame´ canora esquecida até por seus pares… somos os guardiões de culturas esquecidas, xamãs de cultos olvidados, ´senhoras´ a espera dum macho redentor. Sol escaldante e o que não mudou em meu ´skyline´ foi o contorno das ondas; – hoje mesmo deparei estático um sósia de Jesus Cristo como o conhecemos desde o medievo de byke com cabelo ao vento….quem sabe o vício das palavras não seja igualmente punheta escrita? Ai que me enrosco olhando os rapazes especialmente os policiais militares antes que tivesse lido Genet intrigava porque os policiais militares pareciam sempre de pau duro aplicando uma disciplina que me falta. Agora não temo mais despir-me nem escandalizar os que me lêem nesse mundo sórdido de egoísmo. Essa nudez vence a solidão e é maior que qualquer pudor. As voltas noturnas com Pedro me faziam tão feliz! Ser conduzido nas madrugadas pelas praias vazias e cargueiros compondo outra cidade aguardando atracar de países estrangeiros. Num ermo dizia afoito: ´´chupa com cuidado´´. Aquele suor característico e o bafo de maresia estonteava. ´´Calma, chupa direito caralho! ´´ Cessava o ritmo quando algum carro com farol alto passava e disfarçava conversar para retomar. ´´Chupa o saco! ´´ Aquelas regras tão estabelecidas que hoje percebo estúpido conformismo, higienismo contra-sexual, me colocavam sôfregamente na defensiva diante desses poros, dessa pele que agora na maturidade me é tão cara e escassa. Segurar num cacete dum homem por quem tinha carinho ou qualquer vontade de querer bem é tudo que permanece verdadeiro desde esses tempos em que todos rapazes eram John Travolta ou os escrotos tipos de pornô entrevistos nas bancas de jornal. A poesia e a pornografia me soavam tão contíguas, talvez por isso Pasolini me soa tão contemporâneo de tudo que seja mesmo humano, sem peias, eterno como as tardes de domingo. Os ambientes sórdidos com algaravia de homens com camisas cavadas exalando cerveja barata sempre alisando o pau provocativa ou instintivamente, sovacando axilas cortadas por estrias delicadas sobre a pança cabeluda: ainda procuro na noite aqueles antros que se anunciavam paraísos quando algum erro de rota nos levava pelas suas belezas de bicho. A luz mortiça das tavernas eram todo meu apetite que comecei roçar na primeira juventude munido de Nietzsche para disfarçar talvez meus intentos nos banheiros de fundos.
Pondero contigo Téo sobre natureza da minha memória: aqui nesse quarto que me basta com teu peito e imaginar que aquele menino nascido num Brasil obscuro viveria essa liberdade com vista para o Copan pensando descer a serra satisfeito de outro homem. Téo, sinta que duas gerações mudaram tudo e conheci uma pequena soltura aos quinze dezesseis anos até que a peste arruinasse meus sonhos de pederasta me deixando nu com minha poesia. Aquele horror de manchas, nódulos, perda de peso tinha tudo para ser culpa dos quartos de fundos, dos quintais ignotos? Seria o famigerado castigo para quem já não acreditava em castigo tê-lo sob sua égide? A maldição do sétimo círculo, a fornalha sem trégua, o labirinto de Minos! Os homens putinhas malditos sem perdão dizimados quando já podiam mostrar a cara à luz do sol? O amor de menino ainda cobertos por seus prepúcios Téo era tão lindinho com suas cócegas encoxadas nossas frições no fim de tarde para depois lavar o rabinho nos esconderijos do banheiro sem amarras da vizinhança ou espectadores incompreenssíveis para sempre de nosso gozo. Não era só as esfregações: já achava Neil Armstrong um tesão, os galãs de fotonovela me faziam imaginar-me nas tramas com seus balõezinhos bizarros e me apaixonava facilmente com os cabeludos das Brigadas Vermelhas. Sonhava em minhas cabaninhas entre duas camas ajuntadas ser Aldo Moro raptado por vorazes rapazes. Os irmãos mais velhos dos colegas de rua eram meus avatares com bermudas rotas de calças rasgadas e o contorno do saco gasto a bunda bem marcada e nem pensar em depilar os membros onde arriscava meus olhares devoradores. A efígie dos tiranos em cada esquina não embaçavam meu encanto driblando todo espanto com minha estranheza. O despertar era ir rompendo áreas e atos proibidos: um canal muitos canais cortam minha cidade úmida. Velhos sabugueiros, enormes pés de jambolões, a canícula das tardes de soneca e o vento de maresia. O siroco, as monções dos contos de Somerset Maugham, meus jardins secretos onde surgia alguma megera de pistola em punho atirando a esmo num crime dos trópicos. Meu olhar sempre deveria ser oblíquo disfarçado quando passava algum tipo ´´Sansão´´, era o apelido que davam aquele homenzarão ou ´homão?´ em direção ‘a praia num horário inusitado quando todos se ocupavam. Bem antes da onde de corpos sarados ele era forte! Compacto! Com uma sunga branca que delineava aquele espaço infinito imenso farto mesmo que chamavam ´corpo´. Enorme maxilar quadrado, um passo felino característico desses ´macistes´ que se sabem notáveis. Talvez a ele aplicasse o apodo ´´monumento´´: tez morena, largudo, braços solícitos, nenhum constrangimento com sua formosura. Enquanto seguia meus caminhos eram a narrativa de minhas vergonhas, plurais, temerosas, culpáveis: ah! um Deus punidos dos viadinhos, ah! o opróbio ( palavra que aumentava terror ), o vergastar dum chicote enorme que em lingada me torturasse de ponta a cabeça: um juiz haveria para todas as faltas aos enlameados dum círculo sem luz: eu já tinha visto as gravuras de Doré e sabia Dante pelo nariz aquilino espreitador. A fúria duma vida leva ir tateando, a sua poesia tem todo propósito, enquanto essa fúria trágica íamos levando com nome de cotidiano, nalguma ordem que amortizasse todo ímpeto de destino.
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(Fotografia: Ciro Hamen e Bruna Indalécio)