Quatro minicontos de Paulo Sesar Pimentel
Paulo Sesar Pimentel é um escritor brasileiro, autor dos livros Café com formigas (2004), Diário de uma quase (2010) e O cão sem penas (2014). Graduado em Letras (UNEMAT), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT), Doutor em Psicologia (UFF), é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela vista.
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SINAIS
A mulher fecha a janela do carro poucas metros antes de parar no cruzamento. Ajeita o cabelo desarrumado pelo vento, sentido como um dos prazeres proibidos pela prefeitura. Um rapaz, sem a perna esquerda, apoiado em uma muleta improvisada, estende a mão, meio avermelhada, quase encostando no vidro, a poucos sentimentos de seu rosto. Sem olhar, a mulher ajeita a máscara que lhe cobria apenas o queixo, colocando-a sobre nariz e boca; confere o ar condicionado, arruma os óculos, que lhe cobrem das bochechas à testa, imóveis. Ela olha para frente, pelas lentes, pelos vidros e, sob o manto da tripla camada de tecido, três poderes instituídos que lhe protegem, sorri e agradece a Deus o blindado do carro, das contas correntes, da vida no condomínio fechado. Sente um aperto no peito de saudades do Mediterrâneo no começo do ano, antes desta loucura incontrolável. Ajusta o rádio em uma estação gospel, tosse muito, até quase perder o ar, e acelera ante o sinal, para ela, aberto.
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MEMÓRIA
Muitas vezes por dia, entre cômodos, vou à cozinha e olho a despensa de casa. As prateleiras sempre muito cheias. Esboço um sorriso, só lábios repuxados num esgar, que se esgana em um enjoo. Corro à pia e, por entre louças à espera, sinto um fio de saliva escorrendo amargo e sozinho. Abro a geladeira; vontade de ingerir algo, de preencher algum vazio antigo. Impossível. A nova onda de náusea me lembra que fome é outra coisa. O corpo tem memória.
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CORES
“Não consigo respirar, não consigo respirar”, dizia a legenda que traduzia a fala de um homem negro, jogado ao chão, com um policial, branco, com o joelho sobre seu pescoço. “Não há novidades no assassinato do menino…”. Desligo a TV e olho minhas filhas, que me interrogam, apenas com grandes olhos assustados no alvo de suas peles.
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PITÁGORAS DA ÚLTIMA ARITMÉTICA
“São as coordenadas da morte”, gritava o maluco do bairro correndo pelas ruas vazias da quarentena. “26 do 05, 1039; 27 do 05, 1086; 28 do 05, 1156; 29 do 05, 1124; 30 do 05, 28.849”. Amanhã, acrescento um giro do sol à minha trajetória na terra. Meu presente é chorar. Ligo a TV e milhões, bilhões, trilhões são ditos como quem conta moedas. “Acostumamo-nos com números grandes”, penso, enquanto aperto o botão, que, pela fraqueza das pilhas, não desliga a infinda contagem de nadas. Pela janela, olho a rua e vejo o silêncio se fechar atrás do profeta maltrapilho, que batuca uma panela polida de muito receber pancadas. Ele vira a quadra 17, onde tantos assaltos ocorreram à luz do dia, coberto por um trapo verde que se contrasta com o amarelo do ocaso. Perco-o de vista. Meu cérebro não desliga e se esmaga entre quatro paredes: poesia, realidade, memória e porvir. Não há teto que nos proteja e o chão sobre meus pés forma um quinto elemento instável. “Um, dois, três, quatro, cinco… Esoterismos/ Da Morte!”. Todos os números são da última passagem, binária como a própria vida, e “infinita como os próprios números”. Estes algarismos, todos primos, não são abstratos. Choro todos os mortos, presentes, passados e futuros.
A nossa conta não acaba mais?
Andreza Moraes Branco Leria
Paulo Sesar Pimentel, com sua sensibilidade aguçada e um enorme trato com a linguagem, foi capaz, com esses contos, de traduzir realidades que escapam ao mundo ficcional e que nos mostra o quão surreal tem sido nossa realidade; não parece um sonho, mas sim um longo pesadelo, como em “PITÁGORAS DA ÚLTIMA ARITMÉTICA”, que nos faz chorar.
Parabéns ao Paulo e ao ruido manifesto pela qualidade da literatura que tem socializado conosco.
Katia Ormond
Impossível não sentir na pele a angústia expressa nessas crônicas. O poeta expõe as chagas da sociedade do seu tempo!
Parabéns ao Paulo Pimentel e à revista pela publicação.
ROZANa Gastaldi Cominal
Leituras carregadas de “poesia, realidade, memória e Porvir”. E a conta não fecha, choro.
Fernanda maluf
Nao conhecia o paulo, agorA nao deIxarei de ler. Magnifico!
Olga
Cortantes!