Quatro poemas de Alberto Lins Caldas
Alberto Lins Caldas publicou os livros de contos Babel (Revan, Rio de Janeiro, 2001), gorgonas (CEP, Recife, 2008); os romances senhor krauze (Revan, Rio de Janeiro, 2009), Veneza (Penalux, Guaratinguetá, 2016), e os livros de poemas No Interior da Serpente (Pindorama, Recife, 1987), minos (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011), de corpo presente (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), 4×3 – Trílogo in Traduções (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2014, com Tavinho Paes e João José de Melo Franco), a perversa migração das baleias azuis (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015), a pequena metafisica dos babuinos de gibraltar, (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016), minha pessoa sob o dominio dos barbaros (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2018).
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tripalium
● o trabalho devorou ate eu não ter um nome ●
● nem cara nem identidade o trabalho fudeu ●
● minha luta minha familia a mulher e os fetos ●
● meus meninos minha casa o trabalho comeu ●
● todas as moedinhas e os miudos o trabalho ●
● devorou minha calça a camisa a cueca e o gozo ●
● devorou minha unica sandalia de couro e prego ●
● o trabalho fudeu devorou e engoliu o cinturão ●
● furou como cupim meu chapel o trabalho fudeu ●
● minha altura meu peso a cor dos meus olhos ●
● a cor dos meus cabelos o trabalho queimou ●
● os pelos os pentelhos inda mais a minha carne ●
● minha lingua é so e mal a lingua do trabalho ●
● a lingua violenta e pura perversa do trabalho ●
● o trabalho me adoeceu e vomitou remedios ●
● não sumiram nem as dores nem as doenças ●
● o trabalho faz meu mijo feder e apodrecer ●
● como amargo e gorduroso fede o chorume ●
● q escorre das fabricas e jogam nos rios no mar ●
● o trabalho fudeu a casa a familia dos meus avos ●
● fudeu meu pai meus irmãos e minha mãe ●
● o trabalho me deixou assim faminto o trabalho ●
● devorou minhas coisas meu pente meu lenço ●
● destruiu minhas unhas enferrujou meu canivete ●
● a tesoura a faca cariou e partiu meus dentes ●
● meu caralho não sobe ha tanto tempo q se subir ●
● o coração se estraçalha porq caralho e grelo ●
● molhados so podem subir se o trabalho mandar ●
● o trabalho devorou meu cão meu gato e o rato ●
● qeu criava escondido do gato e do cachorro ●
● o trabalho fudeu arvores flores e abelhas ●
● o trabalho devorou as mesas as cadeiras ●
● o trabalho devorou meu pão e a farinha ●
● bebeu minhas lagrimas depois cuspiu longe ●
● dentro das latrinas nos esgotos nos vagos ●
● o trabalho fudeu minha infancia o trabalho ●
● fudeu minhas fugidas meus tios e primos ●
● o trabalho fudeu meus amigos e risos ●
● o trabalho fudeu o canto dos cantadores ●
● o trabalho fudeu a multidão comeu o povo ●
● o trabalho fudeu os sonhos e a punheta ●
● o trabalho devorou estradas e sombras ●
● o trabalho devorou a terra onde duramos ●
● comeu devorou e fudeu minha cidade ●
● o trabalho cagou na agua viva agora morta ●
● vendeu o mar esmagou tudo q vivia e gostava ●
● queima favelas toda noite com meus iguais ●
● em grandes fogueiras na loucura dos barracos ●
● pra fazer arranhaceus por moedinhas e lascas ●
● o trabalho fudeu ate o q eu nunca soube dizer ●
● nem pensar nem desejar nem olhar nem sentir ●
● o trabalho fudeu o suor o cheiro das mulheres ●
● os fins de semana a agua ardente transparente ●
● pra esquecer q o trabalho so faz fuder e devorar
● ate não se ter o q fazer o q fazer o q fazer ●
● o trabalho comeu os minutos e a vergonha ●
● o trabalho so deixou essa madrugada ●
● esse trem esses passos essa bicicleta velha ●
● esse onibus aos pedaços esse aperto essa dor ●
● essa noite pelas ruas entre esterco e buracos ●
● o trabalho fudeu o sono meu sono meu sono ●
● o trabalho fudeu a alegria a brincadeira ●
● fudeu as filhas todas elas agora são putas ●
● o trabalho fudeu meu deus minhas festas ●
● meu tempo minhas forças meus jogos ●
● o trabalho devorou a beleza e a beleza ●
● a beleza de tudo e de todos a beleza ●
● o trabalho humilha os q não trabalham ●
● como se não trabalhar desonrasse respirar ●
● o trabalho desfibra fibra por fibra o coração ●
● o trabalho fudeu tudo q se move o trabalho ●
● não dorme mas sonha e assim cria monstros ●
● a razão a verdade a lei a policia os manequins ●
● tudo isso isso ao redor q gargralha sem rir ●
● o trabalho fudeu tanto q so pode gargralhar ●
● enquanto todos olham como se vivessem ●
● mas o trabalho ensinou q nos não existimos ●
● o trabalho fudeu ate os dias não nascidos ●
● o trabalho fudeu nessa guerra minha paz ●
● o trabalho fudeu meus dias com suas trevas ●
● o trabalho fudeu as estações com o inferno ●
● o trabalho fudeu e devorou meu silencio ●
● o trabalho devorou meu medo da morte ●
● o trabalho ensinou q tudo ja é morte ●
● ensinou q nessa morte é tudo deles ●
● tudo saqueado pelos donos do trabalho ●
● ensinou q esse nada fica sempre cheio ●
● de tudo q eles fuderam tudo q devoraram ●
● pra gastar com brechas com inuteis e bufas ●
● o trabalho é coveiro q so enterra gente viva ●
● o trabalho ensinou q tudo ja é morte ●
*
tirano
● a esse dito tirano nenhum corvo foi igual ●
● dessa maneira de todos ele era conhecido ●
● bastava dizer la vem tirano pra todos sumirem ●
● se espalhavam ligeiros no vento como moscas ●
● tirano apenas gargralhava logo enfurecido ●
● roubando de nos tudo q podia e o q não devia ●
● matava pombos patos passarinhos gaivotas ●
● com as gaivotas tirano bem jovem ●
● perdeu um olho e carregava viva ferida ●
● porisso mirava torto como se não olhasse ●
● balançando tanto e mais a cabeça envenenada ●
● sinistro gargralhava insano quase dançando ●
● assim era nosso tirano sim em todas as horas ●
● faminto fulo de raiva furia ate com as sombras ●
● todos sumiam quando tirano de repente surgia ●
● mesmo sem ser visto so sentido todos berravam ●
● la vem tirano arido gargralhando quase rindo ●
● matando pombos gaivotas corvos passarinhos ●
● comendo ovos destruindo ninhos e vidraças ●
● se espalhando pelos desavisados e arvores ●
● como se fosse uma treva encarniçada e nua ●
● mundo de sangraporco e fodecorvo a dor a dor ●
● gargralhava tirano picando o peito dum pombo ●
● devorando ate os ossos mundo de fodecriança ●
● lodo saindo pelo cu e o tirano sou eu so sou eu ●
● mundodelamaemerda estraçalho tudo q vive ●
● gargralhava tirano triste no telhado de pregos ●
● o pus do olho brincando nas penas nas patas ●
● hoje tirano não voa mais mas é tirano ●
● tirano zangado agora espeta o resto de tempo ●
● surgindo se veria a fera violenta e descarnada ●
● mas nisso agora de solidão tirano fica imovel ●
● lagrimas pingam na ardosia e nelas ele se mira ●
● rola e se agacha como uma galinha ele tirano ●
● sabe q some desse mundodelamaemerda ●
● merdademerdaemerda é urubu quem herda ●
● tanto se faz e se desfaz tudo se perde e doi ●
● o mundo se dissolve a cada instante e agora ●
● pros q se deitam como galinha pondo ovos ●
● tanto sentido nenhum sentido so a dor a dor ●
● assim a lua vermelha corajosa diz se fudeu ●
● porisso gargralho pra esse catarrovermelho ●
● da pena sumir sem matar mais meus ratinhos ●
● arrancar os olhos de gatos destruir fazer medo ●
● partir asas de corvos comer crias de gaivota ●
● roubar tripas no porto ferir cães e os q dormem ●
● acordar com trovões planar na chuva gelada ●
● gargralhar a vida é grande a vida é minuscula ●
● os q morrem jamais existiram e tudo segue ●
● levanta e gargralha como se fosse morrer ●
● ha mais intensidade e qualidade de vidalegria ●
● o bruto viver na maior grandeza maior beleza ●
● do q numa longa vida saciada pela covardia q ri ●
● malicia e crueldade num mundo q se dissolve ●
● vale mais q bondade cagando num velho ninho ●
● falso mentiroso servo de nada pra nada e fim ●
● se o mundo fosse bom se o mundo fosse ●
● outro mas isso voa voa voa e some e sangra ●
● se o mundo fosse bomdebom se fosse mundo ●
● seria certo e imovel seria doente e não seria ●
● gargralha tirano o mundo pede so o horror ●
● sem mim seria vazio e sossomente no fim ●
● com os iguais a mim ele ganha razão ●
● com furiafuria gargralha pra porra nenhuma ●
● agachado como galinha choca sobre mortos ●
● a doença da cidade fustigando as dores a dor ●
● no buraco podre do olho sim nas penas caindo ●
● tirano se abre e gargralha eu sei sei demais ●
● fiz tudo pra nada e q se foda o resto e eu junto ●
● amanhã o sol surgira pra todos não pra mim ●
*
desde sempre
● a terra era verde ●
● com fios de sol e lua ●
● de vida entre as pedras ●
● foi nessa terra tomada ●
● q plantamos nossas sementes ●
● todas as sementes e comemos ●
● frutas e legumes ●
● raizes folhas e galhos ●
● o infinito foi devorado ●
● por todos q plantavam ●
● e criavam esse mundo ●
● parindo os q tambem comiam ●
● folhas raizes galhos frutas ●
● e legumes q sobravam ●
● a carne dos animais q tragavam ●
● o mesmo q sempre comemos ●
● e comemos os animais ●
● seculos de dor envenenaram ●
● essa terra rubra jamais nossa ●
● borbulhando veneno ●
● onde a areia ficava mais aspera ●
● e dura nos cegava e entorpecia ●
● enquanto semeaduras ●
● cresciam sim pralguns ●
● tudo aqui era sempre mais viçoso ●
● mesmo no veneno dessa terra ●
● porq aqui so pudemos trabalhar ●
● como escravos ●
● agora q tamos todos envenenados ●
● pela terra rubra pelos senhores ●
● por nos mesmos e tanto e mais ●
● q não cessamos de vomitar ●
● esse veneno violento ●
● como se ele fosse nosso ●
● como se não fosse terra envenenada ●
● não vendo q nunca fomos nada ●
● apenas parte da terra doente e rubra ●
● sempre mais envenenada e rubra ●
● agora so nos resta não saber o q fazer ●
● vomitar e plantar e vomitar ●
● e vomitar sem descanso ●
● o q querem os senhores das terras ●
● essa terra q pra nos sempre foi verde ●
● se tornou envenenada rubra e amarga sim ●
● como esse suor envenenado ●
● como nossa impotencia envenenada ●
● como esses sonhos de servos e escravos ●
● sonhos pra tudo seguir envenenado e rubro ●
● na terra envenenada e rubra dos senhores ●
● jamais um povo livre nunca mais ●
● terra verde nossas plantações jamais ●
● o sangue o suor todo pros senhores ●
● e nossa carne adubando a terra ●
● jamais um lar um lugar uma lingua ●
● nossa apenas nossa so o veneno ●
● dessa fazenda de servos e escravos ●
● nunca escolhemos de verdade ●
● jamais nos escolhemos de verdade ●
● jamais escolhemos a beleza ●
● a terra a liberdade a cor os filhos ●
● a lingua a loucura a dor a solidão ●
● a morte a vida nem a vida nem ela ●
● nem a leveza nem a alegria nem ela ●
● nunca existimos so a terra rubra ●
● nunca fomos nem mesmo senhores ●
● sopa lavras de senhores ditas por nos ●
● como se fossem nossas envenenadas ●
● antigas ordens vazias q continuam ●
● enquanto o suor cria o mundo deles ●
● so nos resta esse teatro de marionetes ●
*
ha sempre uma guerra entre a carne e a terra
● essa é a hora de fazer inimigos ●
● de acender as fogueiras por o oleo pra ferver ●
● apontar o gume das laminas reforçar os cabos ●
● calado pensar se forçar e pensar ate o fogo ●
● dormir muito pra passar anos sem dormir ●
● amar e desejar demais sim é a ultima vez ●
● pagar as juras maldizer o bendito e partir ●
● decepar pernas braços mãos como gafanhotos ●
● incendiar casas plantações cidades moinhos ●
● devastar tudo em volta ate o fim e seguir ●
● sem q nada vibre q em volta nada se mova ●
● q saibam nosso nome e nos jamais os deles ●
● cavalgar sem cessar dum oceano a outro ●
● destruindo portos barcos tudo q vai ao mar ●
● essa é a hora de fazer inimigos ●
● passar pelo fio da espada todos os inimigos ●
● deixar a guerra ir ate esgotar tudo q existe ●
● q nada possa mais nos olhar falar e mandar ●
● agora somos nos e a loucura q criaram ●
● nomades devorando toda carne e construção ●
● todo horror com nosso horror ate o fim ●
● ja sabemos q nenhuma palavra muda nada ●
● ja sabemos q toda palavra mente e deforma ●
● chegou o tempo de dissolver tudo ate o nada ●
● nenhuma ordem nenhuma desordem o nada ●
● toda criação existe sim sob os rios do horror ●
● esse q levamos ate o fim dum oceano a outro ●
● depois todos nos sangraremos e nada e nada ●