Quatro poemas de Allan Kenayt
Allan Kenayt: é poeta — quando há o espanto, quando há o que dizer; nascido em 1995 na cidade de Cuiabá (ou Cidade Verde, para aqueles que observam suas árvores e flores) – Mato Grosso.
Planeja publicar um livro quando sentir em seu íntimo: “É isso. Tá pronto.”
Tivera contato com a poesia-poesia ao ler “Tabacaria”, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). Após isso, tem bebido das diversas fontes dxs poetas brasileirxs e estrangeirxs — tanto os independentes quanto os não-independentes.
Confessa que há um carinho doce pela literatura brasileira.
***
I.
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
dados de março
de dois mil e quinze
à março
de dois mil e dezessete
revelam que no Brasil
abre-se um novo inquérito
policial
a cada três horas
para apurar
possíveis casos
de feminicídio.
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
oito em cada dez casos
de feminicídio
deste ano de
dois mil
e dezenove
ocorreram dentro
de casa.
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
segundo a Secretaria
da Comissão
de Direitos Humanos,
em setenta e seis
por cento dos casos
de feminicídios,
os agressores são
o atual
ou o ex-companheiro
das vítimas.
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
dois mil e dezenove:
a cada dois segundos,
uma mulher é agredida no país;
e isso
se refere a todo tipo
de violência.
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
Soraia Mendes,
coordenadora
do Comitê Latino-Americano
e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher
(Cladem):
— Precisamos falar
sobre isso:
As mulheres
estão morrendo
neste país.
Nós somos ainda
nomes
em lápides […]
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
II.
enterramos
nossas tragédias na lama,
nossos problemas na lama.
tratamos nossas tragédias
com esquecimento;
tratamos nossos problemas
de sangue & ventre
& leite & pele com
algumas flores
— que hão de ser
recicladas
para o próprio
ou para algum outro
funeral.
porque assim se aprendera
a lidar
com os
acontecimentos deste país:
que embora possua leis
& assistência
& punições
& gráficos
& pesquisas
& conscientização televisiva
— falha
& falha
& falha:
e oculta as suas vítimas
e os seus
fantasmas.
dia vinte e dois
de setembro
fora a data
em que a lei Maria da Penha
entrara em vigor.
treze anos atrás;
treze anos depois.
*
duas mulheres atravessam
meu corpo se as lembro se
as penso num latino desejo
que arderia as águas do Tejo.
duas mulheres ecoam no meu
outono de folhas caídas e no
amadurecer das peras minhas.
constroem esta tarde em que
as procuro. tarde esta, em
que calculo passos & lonjuras
entre uma mulher & outra,
numa tentativa clara & louca,
de estar como estão de estar
como estão em mim
*
os dedos giram
em teus seios
como quem tateia
palavras.
as aréolas
e papilas
são
circunferências
d’um desejo noturno
inda que tesos
— acesos —
no claro.
correm águas
em teu ventre
buscando tuas pernas
que se abrem
e que
se cruzam
num anúncio
de cachoeira
e contrações
onde a fala
que falas
ou falaras
é vertigem.
te tocas,
te movimentas
diminuta
à censura
& te entregas
ao despudor
de extrair mel
e delírio
da tua flor:
no açúcar
te lambuzas
no açúcar
te provas
& gostas
& gostas
& gostas.
vês que
o pejo,
quando
transgredido,
revela um sorriso
— aberto —
em ambos
os lábios.
vês que
o teu feminino
adeja
& que serias
aurora
quente
— se na boca
do teu sexo,
habitasse
algumas das estrelas
do verão.
*
I.
Fomos ao mercado
para saque, sob a
manhã
de sol meio-termo
– mesmo trajeto,
distintas pessoas
II.
Certas flores eram
mais claras e mais
vivas que as da
avenida
onde improvisaram
um ponto de ônibus
– a vida tingindo-se
de roxo;
e o dia,
começava depois da
longa noite
III.
Num mesmo trajeto,
às vezes,
se percebe cousas
novas – ou que não
recebem
devida atenção:
como
um gato saltando
um portão, como
tantas árvores em
tantas casas onde
alguns se sentam
de frente para a rua
– e a rua passava a
ser um universo,
um outro universo,
feito de veículos
estacionados
veículos
em movimento
pessoas
em movimento,
uma outra manhã
em movimento:
e que por estar em
movimento,
quem a observa, só
entenderá em
repouso
– como por exemplo
agora
quando me deito e
escrevo e tento
organizar cada um de
seus muitos detalhes
IV.
Quanta cousa desperta
antes mesmo
do lampejo da aurora
pelo bairro:
os tratores
e seus homens;
os caminhões
e seus homens;
os botijões de gás
e seus homens;
as muitas histórias
– e por que não
as memórias? – de
seus muitos
e muitos homens
amanhecidos antes
mesmo
do amanhecer
V.
Como era grande o
bairro
e maior ainda
as pessoas que se
cumprimentavam
e se despediam
porque a casa os
chamavam para que
se iniciasse
uma outra manhã:
a manhã doméstica
preenchida de mãos
pés assuntos
sentimentos fogões
latidos miados
olhares na janela
idas ao portão quando
se batem palmas
ou tocam campainhas
ou chamam pelo nome
próprio ou pelo nome
que deram por terem
intimidade e amizade:
a interação
aquece a vida
que bate
VI.
Fomos ao mercado
para saque, sob a
manhã de sol
meio-termo
– mesmo trajeto,
tantas emoções tantos
olhares e andares,
e o gentil sopro de
que inda vivemos
de que inda viveremos
de mãos dadas
inda
que os compromissos
nos separem