Quatro poemas de Ana Cláudia Romano Ribeiro
Ana Cláudia Romano Ribeiro traduz, escreve, pesquisa outros modos de expressão e é professora na Universidade Federal de São Paulo. Publicou a tradução com introdução e notas da utopia francesa A terra austral conhecida (1676) de Gabriel de Foigny (editora da Unicamp, 2011) e coeditou a revista Morus – Utopia e Renascimento. Atualmente está no prelo sua tradução com introdução e notas da Utopia (1516) de Thomas More (editora da UFPR). Traduziu também os aforismos poéticos Poteaux d’angles (Pilares de canto), de Henri Michaux, e, em projeto coletivo, a peça de teatro Le bleu de l’île (O azul da ilha), de Évelyne Trouillot. Ilustrou A princesa que conseguiu virar moça comum e As cinco Franciscas de Deise Abreu Pacheco (inéditos).
***
o velho invisível
ao nascer lhe foi designado um lugar
ao lado da prateleira, com vista para os pássaros
dali via tudo e não se entendia com seus pulmões
braços pernas tronco e cabeça sentiam fome e sede
ainda não existia verbo
o verbo apareceu num canto
na interseção do pãozinho e do uso da xícara
parecia um sapo
o sapo tomou sol tomou banho
o sapo foi à escola dominical
vestiu roupa e foi esmagado por um pneu
restou do sapo o salto no olho do velho
o velho foi crescendo
involuntariamente e sem espanto
apertou mãos erradas
trocou chaves
ignorou vozes
pagou a mais
e saudou animado quando bastava um aceno
ninguém jamais saberá
se lhe respondiam
ou como encontraram seu corpo
*
presente
pernas sem varizes
sobem a rua com pote de leite
pedras céu sombras mar
a moça chega em casa de azul
a porta pesada range e abre
um gato mia e o sol de outono entra na cozinha
pães aguardam na mesa, calados
ao lado da jarra fechada que protege o vinho doce
brasas num canto
barriga crescendo em silêncio
*
casa
abrir a janela
são calmas as manhãs
nada além de revoadas de pássaros previsíveis
tronco gemente das árvores secas se ventar
folhas vítreas e cheiro de inseto se chover
talvez permaneçam nuvens
de vez em quando um cão ladra
se calhar, outros latem em resposta
abrir a porta
há abismo e varejeiras e beleza
leviana que conduz ao fétido
cadáver do gambazinho iluminado
pelo sol pelo azul esverdeado do lamê da mosca
enterrar o bicho
começar com o sacho de plantar roseiras e capinar coisas fáceis
terminar com a cavadeira
que prepara bem a cova funda
colher o dia
*
abril
Para a Deise
você diz o domingo é nosso
as copas das árvores penetradas de insônia e cansaço aquiescem
manta na grama de casamentos passados
do rés-do-chão se vê mais alto
teu olho no meu olho
sol no rosto, sol nas folhas, sono
alma que nada no tempo
matinhos em flor
eu digo sim, são nossas as horas
talvez venha um pássaro que ninguém nunca viu
na bandeja a delicadeza centenária da toalha
menor que a palma de uma mão
a fumaça do café desenha um continente inexplorado
tua boca na minha, meu ouvido na relva
calor do verde que aquece o sol
sem aviso prévio venta no Tibet