Quatro poemas de Ana Estaregui
Ana Estaregui (1987) é formada em artes visuais e tem dois livros de poesia publicados: Chá de Jasmim (Patuá, 2014) e Coração de boi (7Letras, 2016). Os dois foram contemplados pelo ProaC de poesia e o último foi finalista do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional em 2017. Atualmente ministra cursos livres de poesia e arte.
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I.
olhar, olhar muito
os objetos da casa
até decorar o número
de círculos do ventilador
doze
saber quantos segundos leva
pra que ele gire
e volte ao lugar de origem
gire para o lado oposto
e volte ao lugar de origem
olhar as cortinas, de onde vem o pó
que se acumula sobre os degraus
o movimento dos gatos quando
se aninham ao redor de si mesmos
quando
formam aquela massa única quente
junto ao cobertor
olhar, olhar muito a sala
ver o que sobrevive e o que desaparece
*
II.
há sempre um degrau
entre o que se escreve
e o que se gostaria
de ter escrito
e quando há um poema
inexaurível
desses que nunca mais se pode
parar de ler
que não se pode mais soltar
porque no meio dele há um vórtice
um poço d’água potável
onde se pode nadar muito
em círculos, sem pressa
onde se pode apanhar com as mãos
os peixes intermináveis
não há como não ponderar
sobre qual seria o verdadeiro poema
aquele outro ainda maior
mais robusto
que alguém tentou escrever
*
III.
você verá as baleias de longe
ninguém pode ver as baleias
de perto porque elas não podem
de verdade ser vistas
as baleias podem apenas ser avistadas
como miragem,
você só verá as baleias de longe
nos poemas marinhos e nas histórias
onde elas e os navios cargueiros
se encostam de leve num baque surdo
com seus cascos imensos
e cheios de musgo
*
IV.
ainda estão apoiadas
sobre o encosto da mureta
as mulheres da enseada
como se ali aguardassem
algum tipo de resposta fluida
do mar um desabamento exato
um sinal claro
do bom fim em fitas brancas
algum numeral da cor da água
que inscreva novos dias
nos calendários oceânicos
as mulheres olham o mar até o cansaço
único modo de olhar o mar
as sucessivas ondas tombarem
sobre as próximas
nenhuma é igual a outra
vistas da mureta