Quatro poemas de Ana Freitas Reis
Ana Freitas Reis (Lisboa, 1981). Licenciada em Psicologia, desenvolve e coordena projetos de Psicologia e Teatro. Há cinco anos que escreve semanalmente poesia para o programa de rádio Em Transe, na rádio SuperBock SuperRock. Publicou e participou em diversas revistas como Egoísta, Caliban, Capivara, Intro, entre outras. É coautora do projeto de residências artísticas ESPALDAR. Participou na antologia poética de homenagem a Maria Judite de Carvalho, pela poética edições. Autora do livro Cordão, editado pela abysmo.
Os poemas “Mudez”, “Dorso” e “Pégaso” estão publicados no livro Cordão. O poema “Eterno Retorno” é inédito.
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Mudez
Esqueceram-se de contar
que a liberdade continuaria o mesmo invento
num tempo em que amar nunca havia sido tão derrapante
e, sem aviso, ser gente poderia ser uma tortura pálida.
A saída seria a porta da ignorância
porque a tolerância
entre os gritos e as gargalhadas
dos loucos, dos líricos, dos cínicos, dos descrentes
explodiria na cabeça dos afectos.
Esqueceram-se de contar
que chegaria o dia em que apenas se escutavam
vozes soltas,
o último sol da Primavera,
todos os versos seriam enterrados,
a clausura como um cerco de sombras
ao redor do coração.
E seríamos perseguidos,
seguidos, influenciados, consumidos.
Os vampiros das coroas podres,
escravos do medo e do poder,
aniquilavam a história.
Não viveríamos mais hora a hora,
pulsaríamos iguais em cada tempo,
espelhos em repetição automática.
Esqueceram-se de contar
que abafariam o som de todas as canções,
o pássaro azul não voaria mais na gabardine do Cohen,
não subiríamos aos telhados dos vizinhos,
nada de assobios, nada de mãos dadas,
nada de árvores
à beira da fulgência desaparecida.
As árvores contraídas como línguas
que um dia lamberam rios.
Renovar e criar
deixaria de ser uma possibilidade.
Respirar
a chama erótica do corpo
seria o delírio de uma artéria selvática.
Esqueceram-se de contar
o que seria de nós
quando desaparecesse
o cheiro da noite,
quando não houvesse mais ninguém
que trincasse as flores silvestres.
A morte
tornar-se-ia ruga –
espasmo quente da serpente
debaixo da pedra.
*
Dorso
Há dias em que ainda visito o céu vazio.
Há dias em que ainda confundo mapas.
Baralho o tempo
espero que nunca ganhe quem semeia
medos à porta do calendário.
Não receemos que os corpos
se encolham ao contrário
que as chuvas desçam das rochas íngremes,
que o dorso se torça perante a água.
Não resistamos à volúpia da manhã desabitada.
Um dia permanecerá essa imensa melancolia jubilosa.
E que esse Deus nos defenda sempre
da bênção escandalosa de um domingo.
*
Pégaso
há uma diferença
entre a magnólia que nos cresce fora
e aquela que regamos com o sangue
Daniel Faria
Só o que gera salva
E tudo o que nasce deixa buraco,
o fino corte da beleza.
Não seremos nunca o pássaro afinado.
Porque o corpo é água viva
e todo o movimento
é duelo contraditório.
O jogo é deixar transbordar
atravessando o corpo.
O campo empírico
tem um modo próprio de pulsar
Sobram-nos suspiros sob a cintura.
Por instantes liberta-se
o fardo empoleirado aos ombros
dando um salto que não depende
do porte do cavalo.
*
Eterno retorno
Ainda é com o pó que brincamos,
a candeia está acesa.
No grande fogo não se toca.
As cabeças chocam,
a recordação falha,
conhecemos o regresso de tudo.
O amuleto é tempo.
Há uma demanda líquida em todos
os seres, rito de passagem.
Ao amanhecer,
arrastas os pés e sacodes o tédio.
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(Fotografia [detalhe] de Daniela Ribeiro [Homem biónico])
Betto Ferreira
Parabéns, Fátima! Belos textos. há minha maneira de gostar de dizer as coisas.
Betto Ferreira
* corrigindo: a minha maneira.