Quatro poemas de André Luís Câmara
André Luís Câmara, 54 anos, é jornalista e poeta nasceu e mora no Rio de Janeiro. É mestre e doutor em Letras pela PUC-Rio. Em 2018, publicou seu primeiro livro de poemas, Rua sem saída, lançado pela Editora Patuá, no qual se encontra Samba na madrugada, musicado pelo compositor, poeta e romancista Leonardo Almeida Filho. A mesma parceria foi mantida em Cacaso, pema inédito ainda em livro. André costuma publicar leituras de seus versos neste endereço no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UC9vyozfj49xajOZxuyc_ZoQ. Atualmente prepara seu segundo livro, que espera lançar no fim deste ano ou ao longo de 2020.
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Toque de artista
Conversar com o silêncio
quando a palavra diz nada,
e eis que rompe um instrumento,
música é voo sem asa;
antes que morram lembranças
dos sons de um instrumentista
– sujeito a aplausos e vaias, uma parada cardíaca –
vou percorrer com cuidado
os camarins das histórias
de bastidores, estúdios,
a verdadeira anedota
do faz-me rir do cachê
de tantas casas noturnas,
muita amizade também
que a essa vida miúda
dá toda a graça, talvez,
nos improvisos, nas pausas
da imprevisível turnê,
cada palco é nova casa;
juntos, ensaio e cansaço
moldam a forma do toque
que nunca sai por acaso,
infinito embora breve,
permanece o instrumento
arquivado nos ouvidos,
humanamente encantado
na arte de sons, silêncios
do eterno artista, esse músico.
*
Tradução de nada
Perto das seis desta manhã
percebo a alvorada de junho,
depois de vencer a neblina
uma luz diferente cobre
a fachada do casario,
uma sensação de repouso
instantes antes do alarido,
a beleza do sol de outono
perseguida pelos fotógrafos
se abre e me impacta, absurda,
sem que eu esteja preparado,
não há promotores de evento
nem sermão de padres, pastores,
anúncio de empreendimentos,
nada que atrapalhe o silêncio
se interpõe aqui neste lado
de uma parte alta da cidade,
vagueio por ruas do bairro
dia a dia entregue ao massacre
que nos aflige, desintegra,
ao tempo em que contemplo a cena
que a manhã me oferece grátis,
sei dos horrores que virão,
nos apegamos às ruínas,
toda esperança agora é vã,
percebo a alvorada de junho,
uma luz diferente cobre
a fachada do casario,
em alguma dessas janelas
é possível ver a pessoa
que virou a noite e trabalha,
procura o mais claro sentido
no leque das acepções,
escava a peculiaridade
contida naquele idioma,
traduz palavra por palavra,
constrói pontes entre culturas
que às vezes parecem opostas
e nas quais, por ignorância,
jamais poderia encontrar
sinais de identificação
não fosse essa pessoa agora
que virou a noite e trabalha,
que é mal paga pela editora,
que está anônima em livrarias,
que não tem plano de saúde,
traduz palavra por palavra
enquanto eu tento e nunca digo,
é sempre uma forma inexata,
é um jeito meio canhestro
de exprimir o que esta alvorada
representa e traz de fascínio
perto das seis desta manhã,
recorro a meu vocabulário
restrito mesmo com o uso
de antigos, novos dicionários,
e não consigo, não alcanço,
é difícil, quase impossível
pra quem mexe com as palavras
mas traduz pouco, traduz nada.
*
Quer café?
Não é que eu nem esteja a reparar
no que você me diz, não é bem isso,
é que aquela bendita ideia veio
novamente depois de dada como
perdida, e eu não podia deixar que
ela se fosse mais uma vez sem
saber se ela valia ou não a pena
pra algum poema ou só pra esclarecer
uma dúvida boba, uma besteira
que se percebe apenas entretanto
se a gente perseguir no fundo-fundo
a ideia que surge, mas escapa
se falta algum cuidado com que dela
tratar, vira um problema, adeus, poema,
não é que eu nem esteja a reparar
no que você me diz, não é bem isso,
e tanto que eu prestava atenção no
argumento, no modo de você
expressar desagrado com as coisas,
o rumo em que o país vai caminhando,
queria até poder te dar alento,
mais força dia a dia, ao menos eu
devia consertar a luz, os canos,
fazer uma comida diferente,
e, sim, tenho interesse em te escutar,
adoro uma conversa com você,
não sei o que fazer nesses minutos:
uma ideia aparece e logo some,
mas, se ela retornar, quem sabe até
eu ganhe algum dinheiro com poemas,
sim, deixa, eu lavo a louça, quer café?
*
Outro soneto
Fiquei bem intrigado ao saber que
há gente que jamais viu uma vaca,
a não ser em TV, celular – vaga
noção: vaca só mesmo no campo e
tem que sentir o cheiro, esterco pacas,
vai dar no gás metano, e que fazer?
A vaca muge e sofre sem querer
a pastar e pastar, e depois caga,
já nem sei o que foi me acontecer:
comecei este assunto sem por quê,
às vezes uma coisa assim me traga,
me puxa, mas lhe digo: a luz tá fraca
nesta casa, nem dá à noite pra ler.
Tá rindo, é? Gosto tanto de você.
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