Quatro poemas de Caio Meira
Caio Meira é poeta, psicanalista, tradutor e fotógrafo amador. Publicou 5 livros de poesia: No oco da mão (Uerj, 1993), Corpo solo (7Letras, 1998), Coisas que primeiro cachorro na rua pode dizer (Azougue, 2003), Romance (Circuito, 2013) e Para ler no escuro (7Letras, 2016). Ganhou, em 2010, o Prêmio Bolsa Funarte de Criação Literária, para conclusão do livro Romance. Tem publicações em geral nas áreas de tradução e crítica literária. Traduziu 17 livros nas mais diversas áreas.
Os poemas abaixo foram publicados em Para ler no escuro (Coleção Megamini, 7 Letras, 2016).
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para ler no escuro
contam que ratos percorrem labirintos
em busca de recompensa ou para evitar
um eventual choque punitivo, contam que noutro
labirinto, o de dédalo, rapazes e moças, por
artimanhas dos reis, eram enviados para
serem devorados pelo que tem de touro no
homem, ou pelo que tem de homem no touro,
menos o herói teseu que cravou sua espada
no peito do homem-touro, guiado pelo amor
e pelo novelo de ariadne, então veio borges
contar que estamos todos desencaminhados
pelo tempo, cegos, como sou cego, ratos, como
sou o rato de mim, heróis, como sou o herói
de mim, tateando, teclando, jogando, em busca
de um fio, de uma mão, de uma bengala branca,
sem norte nem sul, sem oriente próximo ou
distante, sem a espada de egeu, de mãos nuas,
escuto o touro, o rato, o tigre, o cavalo de fogo,
o caranguejo, a tartaruga, o peixe nessa perseguição
infinita como sou, possivelmente, o infinito de mim
*
na noite em que o vento chegou
foi na noite em que o vento chegou, destelhando,
derrubando, encharcando, com suas rajadas e
relâmpagos, com estrondos de portas e janelas, com
roupas despencadas do varal, com as persianas
enlouquecidas embaralhando fios e lâminas, e
os veios d’água estourando pelos canos, na noite
dos assobios e arrepios, e claques, clangues, splashes,
pous, crashes, biis, blings, tiques, trims, pams,
bams, pofts, buzes, cliques, blems, foms, bums,
pops, taques, whams, pufs, toings, cabrums, com
o rumor dos coturnos e o grito das sirenes, na
noite dos gatos, dos morcegos, dos pombos, na noite
eletrocutada em poças d’água, em que palavras
fugiam escorridas pelas paredes, entre penumbras e
clarões, antes do pesadelo sem rosto e sem nome, foi
nessa noite em que, distante de ruas, aviões, táxis,
metrôs, agarrado ao lençol como se fosse em seu
corpo, foi nessa noite que pensei em você.
*
na suíte h
subiram, os dois, para o momento mais íntimo, para
celebrar o que em ambos era primordial, entregando
suas vidas à continuidade da vida, à porção que cada um
tem de animal dentro do humano, subiram, como que
rastejando, para o ato plural, por mais que lhes
parecesse tão singular, subiram, na leveza dos seus 17
anos, mas com o peso dos nomes falsos no bolso do
casaco, subiram como se cada um pudesse ser
proprietário de si mesmo, ou fosse gritar a plenos
pulmões, em praça pública, seu amor, seu amor, para
que isso fosse sabido em cada sala de estar, subiram, e já
dentro do quarto, em vez de lançar as roupas aos ares,
e dar origem ao ritual há tanto antecipado, ou mesmo
prefixado em seus dnas, nos cinco dedos de cada mão,
no menor e no maior sonho, em vez de se precipitarem
um sobre o outro, sentaram-se na beirada da cama, em
silêncio, ele sabia que tinha de se orientar por seu corpo
delgado, por sua brancura, por seus receios, ela sabia
que devia navegar por seus músculos, por seu vigor,
mas, de fato, nada sabiam, não tinham escola, nem
partido, nem seita, não eram ateus ou crentes, não iriam
patrocinar o fim do mundo ou seu começo, na suíte h,
terrivelmente sós, de mãos dadas, com o coração, um
único coração, saindo por suas bocas
*
super-heróis
“he was my hero” disse o comediante
norte-americano ao saber que seu
filho tinha sido assassinado, essa
frase, ele era meu herói, dita por
um pai diante da perda de seu filho
tanto me emocionou por seu eu, na
época, um pai recente, meus filhos
não tinham ainda completado nem
um ano, eram bebês que dormiam
nos meus braços, eu queria mais do que
protegê-los, confortá-los, amá-los,
queria ser para eles um herói, como herói
é ser híbrido de deus e humano,
mortal, mas divino, eu, um pai, encontrei
na filiação, na capacidade de
gerar vida, como faz um deus, um ato
heroico e via, por outro lado, um pai
que perdera seu filho localizar
nele, na cria, o heroísmo, então,
para mim eu descobria naqueles
pequenos caras os heróis que me
resgatavam do que morria em mim,
eu que por tanto tempo odiei meu pai,
que não soube como amá-lo, que não
pude amá-lo, que via nele, um vilão,
meu super-vilão, pelas surras e
humilhações, por ele tanto ter
me rebaixado, espancado, pisado,
castigado, me tendo dado o nome
de um herói, general e político
romano, mas que, numa manhã de
domingo, diante de toda a família
ele disse que eu não chegava nem
na unha dele, eu não tinha mais
do que seis, sete anos, e não chegava
nem na unha do grande general romano,
que eu era um bola-murcha, então eu nunca
tive força para ser para ele
um herói, algum herói, não pude
salvá-lo de seu alcoolismo, de
sua decadência, da morte que o corroía e o
levou tão cedo para o hades, não pude
resgatá-lo de sua morte tão
solitária, quando soube que ele
estava em coma ainda assim eu peguei
um avião e fui vê-lo, mas ele não
recuperou a consciência, então eu
nada pude fazer, confirmei minha
impotência, a incapacidade de
qualquer heroísmo, assim como de qualquer
amor, e diante disso, depois de
vários dias de um estado inalterado
de coma, eu voltei ao rio, e ele faleceu
exatamente neste dia, e eu
decidi que não iria a seu enterro,
não tendo feito portanto o devido
luto, big mistake, pois ele permaneceu
sendo meu vilão já que não pude
ser seu herói, vilão a quem reiteradamente
culpei por meus fracassos, impotências,
medos, temores, repetindo, de
certa forma, talvez, sua própria
trajetória, de alguém que se afastou
de sua família, repetindo a vilania
transmitida há quantas gerações,
que se expressava numa incapacidade
de amar ou de demonstrar amor ao
próprio filho, como ele talvez não
tenha sido amado por seu próprio
pai, não tendo sido ele quem sabe
capaz de ser herói para o pai, e assim
por diante (ou para trás), perpetuando a
vilania entre pais e filhos, a mortificação
herdada e repercutida pelas fibras
do genos, o genos em cujos vetores
trágicos me vi envolvido, por isso, mais
do que ser herói para meus filhos, eu
quis ver neles meus heróis, para que eles
pudessem, a seu modo, salvar o
genos, interromper o ódio, a punição
retransmitida de pai para filho,
dar fim à violência que possivelmente
vinha mortificando geração
após geração, ou pelo menos
não deixar que a raiva fosse o único elo
de ligação entre pai e filho, claro
que não posso dizer que fui salvo,
mas sei o quanto posso amá-los, agora
já adultos, ou quase, e sei também quantas
vezes eles já me resgataram de
momentos de raiva, de bile negra,
de pequenas (ou grandes) hamartías,
não permitindo, de algum modo,
que a força preponderante entre nós
fosse negativa, por isso, a herança
maior que gostaria deixar para eles,
meus super-heróis sem capa ou espada, é
que, caso queiram ter filhos, que os
amem o quanto for possível
amá-los