Quatro poemas de Chantal Castelli
Chantal Castelli nasceu em São Paulo, em 1975. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, é poeta, escritora, tradutora e professora. Teve poemas publicados em diversas revistas e antologias. É autora de Memória Prévia (São Paulo: Com-Arte, 2000) e Os cães de que desistimos (São Paulo: Hedra, 2016) – este último recebeu o patrocínio do programa Petrobrás Cultural.
Os poemas “No sonho” e “A mulher-inseto” foram publicados em Os cães de que desistimos. Os poemas “Garota-bomba” e “Resolução” são inéditos.
***
Garota-bomba
“Segure-a firme na axila, mas sem fazer pressão”,
me ensinaram, “como se fosse um ovo”.
Ninguém espera que uma menina ande por aí
com uma bomba embaixo do braço.
Ninguém percebe sua aflição.
Mesmo que se poste no meio da praça
que se agache no chão da feira
mesmo perambulando de forma
suspeita.
Ninguém imagina o que pode
uma rajada de vento contra
a gravidade.
Deteria uma ginasta em plena
queda, longos segundos
oscilando entre o fundo da piscina
e o alto do trampolim.
(Nesse momento todos a olhariam
bocas abertas, pensamento alerta
na iminência do fim)
Ninguém entende o que isso significa
– morrer sabendo que se morre, “perto demais,
você está perto demais!”; a autonomia
de cada parte do corpo em
ruínas, em câmara lenta.
“O mais rápido que puder”, me ensinaram
essa forma
de misericórdia
“para que os inocentes
não tenham tempo”.
*
Resolução
I.
Para criar a narrativa
houve por bem comprar
e carregar
o saco de laranjas
(em torno de 15kg)
não rente ao tórax
como um bebê deitado
mas em pé, à frente
do corpo, afastado
como quem leva uma criança
suja pelos pulsos
esquecendo
(além de tudo)
que apodrecem.
II.
Osteopata, além das
manobras básicas,
afunda os dedos entre
órgãos internos, altera
o lugar do fígado
(muito baixo)
e com um pouco mais
de força
abre seu abdômen
e retira dali
o monstrengo, o roto
a bituca – uma causa
enfim
uma resolução.
*
A mulher-inseto
A mulher-inseto
vive no lixo
acumula cacarecos.
Chama-se assim
porque temos nojo
embora não nos faça mal.
A mulher-inseto
não sabe que uma casa
assim como uma cidade
deveria existir de modo
a amenizar a aflição.
A mulher-inseto
abriga-se na casa dos pais
falecidos
e nela esconde
os filhos
um em cada parede.
*
No sonho
O pescoço cortado
aberto como uma fruta
vermelha, rosada.
A cabeça por um fio.
A cabeça bamba, solta.
Não posso lavar o cabelo
antes do corte
porque arrisco perdê-la
no intervalo entre a pia e
a cadeira;
como o dente postiço
como o recém-nascido.