Quatro poemas de Cinthia Kriemler
Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco, lançado em fevereiro de 2020 (Contos); Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.
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Convocação
Há tambores nos passos que disputam caminhos de pó.
Esqueletos se deitam sobre os ombros dos que não vergam
como carga desconsentida no lombo das bestas de tropa.
Chibatas ancestrais abrem rachaduras de pus na pele
branqueada por estupros. Assassinos e seus comparsas de cifras
encobrem a morte no riacho da aldeia usurpada.
Há sinais. O cheiro nauseabundo das carnes em fogo do homem que mora
nas calçadas. Os hematomas do espancado que se sabe bailarina no mundo
que o aprisiona a um masculino sem nuanças. O caixão branco
indecente que nina sonhos amputados por carnificinas.
Há uma guerra que não enxerga mais girassóis. Nos jardins, a semeadura
é de carnes em desassossego. Adubo de sangue fertilizando a colheita da justiça.
Há tambores nos passos.
*
Violação
Príncipes gnomos ninfas. Mortos.
Na névoa do pesadelo, só o monstro vence.
As mãos que tampam os olhos molhados não
cegam o fedor do abuso.
É quase manhã. Pausa.
O monstro volta para a caverna.
Mas a dor que arde e sangra entre as pequenas coxas
brutalizadas prevê retornos.
Só os gnomos e as ninfas não voltam.
E nesse enredo não há fada-madrinha.
*
eutanásia
não é a dor. a dor eu sei.
o aperto, o peso, a ânsia
a água empoçada nos olhos.
eu sei. não é a dor. a dor eu vejo.
cheiro. lambo. chupo.
com a dor eu trepo.
é com o amor que eu não me ajeito.
esse altar tão alto. tão ar.
e eu tão abissal
peixe de profundezas. de fendas.
desprovida de luz. de som. de oxigênio.
é com a vida que eu não me ajeito.
não me acerto com coisa grande
demais (amor. adeus)
não, não é a dor.
a dor não mente. não engana.
é o amor que desliga os aparelhos.
*
natureza morta
tenho cantos prediletos para me esconder
das loucas que me moram
para me deslembrar dos eus-demônios
máscaras de kabuki
que comem minhas carnes
com pauzinhos japoneses usados.
meus medos-inquilinos foram subornados por girassóis
de plástico
amarelos como o riso, o roupão, o peito
da coruja da sorte que namora o pássaro preto
o soalho, a parede rachada, a garrafa de licor
alcoólatra que se bebeu até a penúltima gota, as fotos
antigas em que tudo é história que se conta
distorcendo a gosto
não há rotas para fora | só as de colisão
e as coisas de dentro fizeram acordo com uma rotina apática
panelas sem tampa filtro de barro louça na pia roupa no varal tábua de passar
a vida a limpo
na estante, um embornal de ácida emergência
: hilda, leminski, bukowski, rimbaud
para aplacar condescendências
na cômoda, um telefone desbotado
para emprestar à solidão
nos dias em que ela não me suporta