Quatro poemas de Claudio Daniel
Claudio Daniel é poeta, tradutor, ensaísta e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo, diretor adjunto da Casa das Rosas e colunista da revista CULT. Atualmente, ministra aulas de criação literária via internet, no Laboratório de Criação Poética. Seus últimos livros de poesia publicados são Cadernos bestiais (2019), Marabô Obatalá (2020) e Fuyú, poemas de inverno (2020).
Os poemas abaixo integram o livro Cadernos bestiais.
***
Antilabirinto
éstos mis alarmados compañones.
César Vallejo
À desordem de pensamentos escuros —
figuras foscas, restos roídos
nos escaninhos
da memória.
Este é o meu braço esquerdo
que por sua conta
recusou ser treva.
Este é o meu braço direito
avesso a considerações
indelineável como um pesadelo.
Absurdidade, minha fêmea
entulhada em meu desterro.
Tudo são retalhos,
figuras em folhas-de-flandres
refratadas em meu próprio minério.
Morde-se, minha memória.
Nenhuma similitude
com o lameiro do cotidiano.
Estamos quites. Ensarilhados
em nosso nevoeiro.
Absurdidade, minha fêmea
reverbera em meus ossos:
estas quinas sem remate;
estas quinas de um antilabirinto
que sozinho percorro.
Esta é a minha clavícula;
esta é a carantonha com que insulto
as febres no espelho. Porque nada
faz sentido. Estamos quites.
Ensarilhados em nosso nevoeiro.
Absurdidade, minha fêmea
esta é a minha língua deformante,
meus jogos dissuasórios.
Porque nada faz sentido, nada.
Anjos pictóricos de estranhas asas
anunciam o próximo massacre:
corpos carbonizados numa aldeia
da Nigéria. Dois mil mortos.
Nenhuma repercussão na mídia.
São apenas negros: quem se importa?
2015
*
Retrato IV
Pedras queimadas
na crueza
do abandono
tuas disformes formas
marcadas
a cutelo.
Pele dispersa
arroxeada
de corpo inânime
esfiapada
entremostrada
em febras
de açougue.
Despejada
na lama,
como detrito:
um aviso
do quebra-ossos
para que ninguém
reclame.
Mundo
desmundo
de mortes
emudecidas
onde olhos
se fecham
para o flagelo
mais cegos
que a noite
mais cegos
que a morte
de indistintas
estrelas —
apenas os corvos
crocitam,
apenas os corvos
— cachorros do céu —
desenham,
com suas vozes
desconexas
a cena do mais
absoluto
horror.
2016
*
Retrato IX
Um rato se tornou a unidade monetária
Zbigniew Herbert
Com
a boca
e olhos;
com
medo
e asco.
Quem
ousa
dizer?
Você
pode
escavar
camada
e camada
dessa
pobre
superfície:
barro
pedra
ódio
estrume.
Quem
partirá?
Para
encontrar
cinzas.
Lua —
eis a chama.
Prata —
eis a jovem
morte.
A cega
come
os seus
próprios
olhos.
s/d
*
Retrato X
E todos os sentidos foram amputados
Luís Carlos Patraquim
entretanto a aranha entretece sua teia expele os fios de fiandeira gotas de seda convertidas em amarras nos entornos das paredes uma jornada pela noite manuscrita sem temor ao desengano à desmesura uma jornada na curvatura do ambíguo até a lenta corrosão de tudo enquanto buscamos entrestrelas entrevértebras uma saída da insanidade um escape desse alcácer de ínferos onde bolsonazis esfolam fêmeas e hordas de hunos urram de ira nas ruas rubras turbas das trevas zumbis das telas de plasma espancam negros espancam travecos espancam putas viaturas expandindo luzes multiplicando mocambos e mortos expostos em vitrines para as festas tanáticas de hitler para as festas tanáticas de obama para as festas tanáticas de israel celebram falos celebram falos com pontas de agulha num desfile carnavalesco da morte caveira neanderthal essa marcha de insanos leitores do globo esses insanos leitores da veja esses insanos leitores da folha esses insanos leitores do völkischer beobachter há um céu de pureza eu sei em alguma dimensão da mente há alguma dimensão de pureza eu sei no sutra no tantra no veda mas aqui legiões de dobermans saúdam o coronel brilhante ustra descerebrados acumulam-se nas igrejas para louvarem o santo dólar o santo dízimo a santa estrela de david caveira neanderthal este espaço tétrico onde queimam gárgulas linhas retorcidas de um metálico esqueleto talvez um anjo extraterrestre chacinado por ter seis dedos em cada pé não há saída na viagem noturna do corcunda não há saída neste circo dark de lesmas liberais lobotomizadas pela mídia então eu caminho entre a alcateia com um maço de cigarros no bolso e dez moedas de cinco centavos e sigo e persigo uma rota que não existe uma rota rota uma trilha para fora dessa cova onde talvez quem sabe seja possível desescrever-me anular-me excluir-me para sempre dessa página.
2017