Quatro poemas de Diego Vinhas
Diego Vinhas nasceu em Fortaleza em 1980. É defensor público e participou de antologias do Brasil, EUA e Portugal, além de ter publicado em diversas revistas, como Inimigo Rumor, CULT, Sibila, Escamando, Modo de Usar & Co, Oroboro, Gueto, Zunai, dentre outros. É autor dos livros de poemas Primeiro as Coisas Morrem (2004), Nenhum Nome Onde Morar (2014) e Corvos Contra a Noite (2020), todos pela editora 7 Letras (RJ).
Todos os poemas abaixo integram o livro Corvos Contra a Noite (2020).
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Miséria
está
nas roupas por lavar
em formação de cordilheira
sobre a cama, no
pré-molar que mastiga, mastiga
sem discernir os legumes em flutuação
no caldo ferruginoso (névoa de sopa
trabalhando como orvalho
na tela do PC ligado para ninguém).
na casa inteira em rotas de fuga
dos pedaços expulsos do sonho.
no exílio feroz do corpo
nas estrias da pele
verde-água da geladeira
e no gesto
em arrumar a trança na filha, as mãos
adultas demais para não conhecer
o açoite que acompanha grátis
qualquer mecanismo de amor.
está ali também.
*
Soap opera
o menino K., no playground, olha o inseto próximo
e sua órbita ébria na parede, a mesma onde
o operário K. ganhou, antes, uma pequena cicatriz
hoje adotada como marca de nascença
ainda no encargo de erguer pedras para a firma K.
em breve interditada após vistoria de rotina
do órgão K., sob as ordens do auditor K., cuja
autoridade não inclui negociar sanções sem
a prévia anuência expressa do diretor K., que
chegou onde está com atitude positiva e muitos
degraus feitos com as almas de muitos
colaboradores Ks, mas “perseguir sonhos é
um direito de todos”, compôs o publicitário K.
atado em fantasias cujo único tema era estar
longe dali, talvez o clichê de uma ilha, sob
uma constelação que por ironia se chamasse
K., ou apenas uma caminhada sem testemunhas
além de granizo e paredes, uma das quais
abriga no verso o menino que já cerca com
os dedos o inseto, e que lembrará desta hora
quando o Estado K (aqui os bárbaros nunca che-
garão) no futuro repetir com o então adulto
K o que ao invertebrado a mão infantil ensina,
em um único ato: o comando de esmagar.
*
Letra morta
(vira o copo e coça seu próprio gueto na face)
sim, estou aqui há muito tempo
e já tentei falar essa língua
(numa embarcação cruzando o Atlântico ou Mediterrâneo,
onde seu ar guerreia com o ar do outro no impossível
do espaço) (em um vagão clandestino, atracado
com feno a flutuar na marcha de torpor que os trens
inventaram, fazendo esbarrar entre si sonhos com
a plantação de batatas e animais soterrados vivos para
conter a radiação) (no medo em travessia, chão
rajado de lua, evitando cactos e concentrado em não
ouvir o primeiro – não é possível ouvir muito mais
que o primeiro – disparo da polícia de fronteira.)
eu já tentei falar essa língua. só aprendi a dizer (inaudível)
mas minha avó cigana me ensinou a decifrar isso (ilegível)
na linha da mão e a cortar caixas de fósforos formando
um (incompreensível).
(parece franzir a atesta, mas, olhando melhor, são rugas. fixa
um ponto atrás da cabeça do entrevistador, mundos atrás)
um dia lembre dessa camisa de botão
e pense na genealogia de se abotoar a melhor camisa
em um lugar assim
e se lembre que mesmo no ano 2666
se você rasgar a calça e extrair a perna
e limpar e esfregar e polir a tíbia
o seu osso continuará
estrangeiro
*
Nossa música
um bilhete suicida há tempos resolve bem o tema da autoficção
(dos melhores registros: cano duplo e cérebro fora da caixa
estourada, camiseta de amor à Transilvânia, e o recado seco:
excuse all the blood). um inseto menor imobilizado na iminência
do toque das quelíceras da aranha: isso resume muita coisa.
alvos humanos do _________ (país no Oriente Médio atual)
numa tela de game onde uns por-assim-dizer-soldados escolhem
e clicam – ao som de Mötorhead – quem é cancelado ou não.
mesma coisa. a felicidade de crianças e tobogãs em um panfleto
que fede a verniz. aqui tá foda. de qualquer lugar de fala, a desgraça
é um animal onívoro (e sabe trabalhar à paisana). a morte, um
latifúndio. a Kalinnikov, um ótimo argumento. alguém sob o
feltro roto (alguém que não sabe ensinar arte a uma lebre morta)
em uma dinâmica de grupo, acompanhado de um coiote:
I <3 Amerikkka and Amerikkka <3 me. olhos de madeira de
demolição. Saturno em um rodízio de filhos. vaza daqui, caralho.
o que os vizinhos e a Nasdaq diriam disso? engravatado, água-
de-colônia. ele só tem mais onze horas de vida, mas não sabe.
miocárdios e smartphones vêm com obsolescência programada.
diante do choro infantil, o caixão foi parcelado em 10x. ainda
tem gente decente no mundo. você descobre, ouvindo um
youtuber, que hoje seu corpo e seu dinheiro não têm mais
narrativas. meu amigo médico, que roubou livros de colegas
de quarto canalhas em um hostel em Copenhague, escreveu
que não há poesia pós-Auwschitz simplesmente porque não
chegamos no pós-Auwchitz. bulldôzers em pose sob escombros
de casas para a foto-troféu. ameríndios e a visão de estranhas
embarcações no horizonte marítimo, traficantes (ou não) em
um churrasco de laje: eles só têm mais 2 dias de vida (ninguém
sabe ainda). engulhos ao som do hino nacional. a boneca Barbie
não aprendeu a não rir (deve ser horrível). minutemen, partysans,
rotweillers e uma longa história de luta por território. 450 kg
apócrifos de pasta-base de cocaína enchem os bolsos de algum
não-dono. um dândi triste, vestido de azul: um não-lugar.
também de um não-lugar Gagárin vislumbrou aquele globo
azul de continentes cariados. mulher sozinha com criança nos
braços, a imagem mais acabada da fortaleza e da violência.
“horror horror horror horror”, diz a Ninfa Eco. e o zeitgeist
assina (uma prece): “estamos em guerra. estamos em casa”.