Quatro poemas de Eliane Marques
Eliane Marques é poeta, psicanalista, ensaísta e colunista do jornal Zero Hora. Publicou Relicário (Grupo Cero, 2009), e se alguém o pano (Escola de Poesia, Prêmio Açorianos na categoria Poema, 2016) e as traduções Pregão de Marimorena, da poeta afro-uruguaia Virginia Brindis de Salas (Figura de Linguagem, 2021) e O trágico em Psicanálise, da psicanalista argentina Marcela Villavella (Psicolibro, 2012). No prelo o poço das marianas. Coordena a Escola de Poesia. Graduada em Direito, Mestre em Direito Público, Especialista em “Constituição, Política e Economia”, também trabalha como Auditora Pública Externa do Tribunal de Contas do Estado do RS.
Os poemas abaixo integram o livro e se alguém o pano.
***
o descasque da quinaria dos cântaros
até que o tric tric
a negra nega fulô
como se já não bastasse
do alabama para roubar nossa pele
ê eta molambos apossados
a nega moura a negra fulô ao prelo
mais que o protocolo dos casacos o baque dos talheres
heeiiiaaa os cosongos à sopa
banquete feito colheradas de terra
judiaria essa negrinha lhe mediram boas as três braças
por que nervo
quer dizer metades de lua com a guarda-baixa
não se trata de a raiz – cascas as medalhas
a era do sôngoro cujo son ecoou na falta
há muito se abasta
com o refugo das línguas (com molho)
com o metiê dos dois pés na taça
ê eta a nega ê eta a negra fulana
termo de pregação dos cabelos a prêmio
pré-molares esquecidos do braseiro
heeiiiaaa
em qualquer saco (de novo)
o pan pan pan dos martelos
*
se mancenilhas na língua
norma de pedra e sabão
se às prontas tortilhas
dois pulos
sobre as patas do boi
se o sôngoro sabe
se contra o couro
querela a savana
e se irene não-à-lei
e se irene não-sinhô
e se não-tão-preta
e nem-tão-boa
e se ainda aos piores mortos
o amém das moças
e se não-não-iá-iá
e se tome
e se ainda o amontoado atamanca
e se alguém o pano
disfarçá-lo com um manto
a animália-dilúvio
a cruz-escudo
a rotina dos túmulos pela úmida vez
au-delá
oh gente do alabama
tombem as louças contra a lâmina
seu manuseio – a convenção mais antiga
banida dos brasões (aqueles)
ranhura na sala dos infantes
*
tal seu ofício
ofício negro
hera em cada mano
nelúmbio e sonho
ofício de negro
o mais americano
desses que se acossam nas vértebras
à esquerda de um canto
oficialato já disseram sem mando
quebranto e ordálio
nem o mississipi
pelos bantos aí afogados
negrisísifo se for o quase
junto à gordura dos soldos
a marcha (a medula) – os sovacos
entre ônibus e obituários
a propriedade
(e por que não)
de qualquer hotentote
a salvo apenas os ombros
ouve: aqui uma vez bandos
também uma vez nibelungos
quando a querença dos anéis
outra vez mameluca
mas a cucharra
como se nuvem
ofício enterrá-la no domingo
*
Soube que conhece “B. A.”
E que, por certo, a amou.
E que, por certo, “B.A.” continua “dona”.
E que, por certo, o amou.
Soube que transaram num supermercado da
califórnia; que tiveram astrolábios de hipátia para os sóis dentro de si.
Sei que continuam “donos”.
Soube que, talvez, tenham sido nessa fronteira onde
jamais eu poderia ser.
Finjo que não a conheço.
Mas sei do nome por uma das xícaras que integram
seu patrimônio – quebrada ao chão da estância, marcada com o ferro
de palomas, anel dos dedos da patroa.
Ah, como me apetece perder os molares;
Como me apetece morrer de fome;
Como me apetece que dazet arranque esses cabelos à foice;
Como me apetece que essa cara caia do rosto, feito
bolas de marfim na bacia da noite;
É meu sonho ser carcaça no cemitério dos elefantes,
não esse cheiro de esgoto que me corre desde o ombro.
Da dinastia das lavadeiras, advenho; da dinastia das
cozinheiras, advenho; da dinastia das planchadeiras, advenho; …
O destino que me guarda é o do ruído das espumas
que passou com aquele arroio.
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(Fotografia de Sabrina Gabana [detalhe])