Quatro poemas de Emmanuel Santiago
Emmanuel Santiago, natural de São Lourenço/MG, é poeta, crítico literário, tradutor diletante e professor de Literatura no Instituto Alpha Lumen, de São José dos Campos. Possui doutorado em Literatura Brasileira e mestrado em Teoria Literária, ambos pela USP. É, além do mais, autor de Pavão bizarro (Patuá, 2014) e deve lançar seu segundo livro de poemas (título ainda não divulgado) no segundo semestre de 2020.
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A legenda de Robert Johnson (parte I – A origem)
A alma, prenda que foi paga
com o sangue de Jesus,
Robert Johnson a vendeu,
conquistando o dom do blues.
Trabalhava na fazenda,
na colheita do algodão,
mas o branco dessa fibra
encarnava suas mãos.
Mãos de negro, carregavam
a memória dos avós:
dois escravos, entre tantos,
cuja dor não tinha voz.
E por isso quis cantar:
sua dor não era muda;
arrancá-la foi preciso,
transformá-la toda em música.
Todavia, reza a lenda
que ele não levava jeito;
sua voz soava fraca,
seus acordes, imperfeitos.
Eis que, numa encruzilhada,
Robert Johnson, pertinaz,
envergou-se de joelhos,
invocando Satanás.
O Diabo então surgiu
numa grande labareda
(porém não me comprometam;
como eu disse: reza a lenda).
*
Acalanto
É preciso sepultar
a substância instável
de antigas tempestades,
soterrar os relâmpagos
(suas ossadas
fosforescentes)
e deixar que o horizonte
esfacele a madrugada
com suas garras de granito.
Sobretudo, é preciso
ouvir a música feérica
das esferas, o brilho
estridente das estrelas, o
canto da lua apascentando
as marés murmurantes,
e fechar os olhos,
e existir dentro do sono,
do sonho; esquecer-se de ser
por alguns instantes que sejam;
cessar, enfim, o pensamento,
a voz confusa do cansaço.
*
Soneto epitáfio
Que triste sina! Desde que nasci
vivo qual miserável criatura
que está fadada à morte prematura,
pois todo vivo traz um morto em si.
Mijem em minha lápide! Pois, se
o tempo tudo mata e desnatura,
por que gravar em minha sepultura
as palavras do verso que esqueci?
Meu corpo não será mais meu, quiçá
nunca me pertenceu nem a ninguém;
só aos vermes, um dia, dar-se-á.
Então, encontrarei meu happy end
no chão do Cemitério do Araçá,
sem elegia alguma, nenhum réquiem.
*
9525
Meu ódio pesa setenta toneladas
de aço retorcido e corpos
carbonizados; meu ódio
é um avião em chamas
(como o Sagrado
Coração de Jesus),
um avião em pedaços
(o coração de Nossa
Senhora das Dores).
Este é meu corpo; tomai,
filhos da puta, e comei,
porque o ódio
é minha hóstia,
por meio dele comungo
com um mundo de céticos
suicidas e cínicos assassinos.
O ódio é minha religião.
Sou Tereza D’Ávila
em êxtase no frenesi
da chacina, o Francisco
de Assis dos matadouros.
Num gesto de fúria
santa (santa porque
pura), mergulho no abismo
com minhas asas germânicas;
sou a Estrela Absinto,
um arcanjo kamikaze,
e arrasto comigo o rumor
de cento e cinquenta pessoas
desesperadas. E um jardim
de cabeças
decepadas
brotará sobre meu túmulo.