Quatro poemas de Felipe Ribeiro
Felipe Ribeiro é um escritor carioca de 25 anos, graduando em Letras/Literaturas na UFRJ. Possui artigos, traduções e poemas autorais publicados em diversas revistas e antologias. Produziu dois livros de poemas: Amargo Embargo, de 2013 e o mais recente, Tijolos de Silêncio, pela Editora Cândido, em 2017, sobre a contemporaneidade e a realidade do trabalhador, criando um valioso documento histórico do período pré e pós-golpe. Esse último recebeu grande apoio crítico e de público, esgotado, e saindo na indicação de livros de poemas de 2018 da Revista Quatro Cinco Um. Também concorreu ao Prêmio Oceanos de Literatura. Felipe só vai parar de escrever quando morrer.
***
beira-mar
quando avanças e
retrocedes como
dois remos que
talham o flanco
das águas e, de
leve, acarinham
as milhas, atracas
a febre na marina
e questiono a razão.
ao entrar e recuar
como vagas à beira
à beira-mar, à espreita
das pedras – e em
seguida retornar ao
mar – por medo da
solidez tecer outras
leis de modo a reter
o estado líquido,
questiono
a razão.
como dormideira
ao abrir e fechar
as bocas ao toque
do imprevisto, cobres
a resposta com retina
de ferro: jamais
poderás ver com
olhos de alucinação
se é antigo o antígeno
ou o bastante para
que não corras perigo,
eu digo,
ao questionar a razão.
quando avanças,
como fazem todas
as coisas que têm no
ventre o poder do
retorno, como um par
de remos, de vagas,
enxame de plantas,
entras de quando em
quando no aroma do
invisível; como a língua
no mar morto, altamente
salino, tua linguagem
flutua e recua como fazem
as coisas que seguem
a questionar a razão.
*
Crisálida
Um cilindro umbilical, delicado cristal,
Liga-se ao teu abdômen por meu abdômen.
Nascera como as pedras de areia –
Quando o vento junta um grão ao outro
E eles se desfazem ao toque da criança
Atirando-a para longe dos joelhos.
Aos poucos a tudo drena, dia após dia:
Meu espírito de Ariel, a fertilidade, alegrias.
Por dentro todo o sumo corre pelo
Peciolo, como cocaína, ao teu ventre.
De mim a você, terrível simbiose,
Testando reações como camundongos.
Pelo tubo, digo adeus aos meus deveres
De casa, aos calos que saltaram
Da caligrafia para os dedos,
À lenta parafina que cobria meu fígado;
Digo adeus aos meus olhos que ainda
Se mantém verdes como figos de abril,
Aos espantos com o incômodo de estar vivo
E ainda colar a vida como figurinhas
Que perderam a aderência ao álbum –
E não sabemos quem o pôs em nossas mãos.
E quando o líquido se torna mais escuro
Mais escuro quanto o borrão dos rostos,
Ainda vejo os últimos dedos da transfusão.
Levam, sós, ao teu umbigo a restante fração
De alguma vontade ou resistência.
Nem mesmo ódio mais, amor mais.
Até que vejo a mão sem luz;
A escuridão puxa a cauda do líquido solar,
Deseja se desprender para seguir o fluxo –
como fiapos de cola que se agarram aos dedos.
O momento que a areia deseja tornar-se cimento,
As estátuas vivas.
Então amputo com violência o tubo
E agora não há o que fazer com a borra,
Produto restante em meu corpo.
Não serve ao menos para ler o futuro.
Não há o que fazer com o que não levaste –
Como um homem sedento não ingere o copo
Ao terminar com o canudo.
Não há o que fazer com o que não lhe dei –
Como a água que se oferece aos lábios
De maneira a não morrer na praia.
Os tubos se afastam como duas naves –
Que no balão do universo, por ilusão de ótica,
Parecem locomoverem-se como protozoários.
Mas estão a toda velocidade, mais distante agora.
E o primeiro homem que pisar em ambas
As terras segregadas, lá fincará uma bandeira
Que diz – A traição do pecado só não é aceita,
Pois não fomos nós os cúmplices.
*
Sintoma
Saber, sentir que
respiramos é tão
crucial quanto
a inspiração
em sim.
Não sentir, ao
puxar o ar, a
ventilação, os
nervos não
dizendo
que
estamos em
pulso de vida,
atentos. Diante
disso, sei: existo.
De forma qual,
sem saber a que
inspiro, reviro
o sentido
voltando ao
princípio:
nudez do teto
do crânio ao
assoalho dos
dedos,
duas vezes mais
uma vez.
*
Salmo 139:5-6
Algumas perguntas precisam de respostas.
Talvez não sejamos nós a dá-las.
Ou mesmo Deus, criador do mistério.
Por mais palavras que descartemos
Com mãos de jogadores.
Outras não precisam de respostas.
Apenas por não terem sido declaradas.
Talvez o trava-língua tenha sido o jogo
Da infância do chumbo e de Stálin.
Além: ainda não se sabe o que perguntar.
Certas perguntas não trazem questões.
Apenas afirmam direção.
Essas não sabemos serem perguntas de fato.
E conhecemos quem só pergunte.
Dizia K., um amigo da repartição.
E também há quem não saiba como.
Perguntas não se perdem na floresta.
Há perguntas que ressuscitam o ao redor.
Mas não conheci quem as fez.
A boa pergunta é volátil como preconceitos.
E nunca é inédita como a morte.
O cão pergunta de fome.
O homem, por seu nome.
E quase sempre a intenção
Contém a própria resposta.
Sem interrogações as questões estão postas.