Quatro poemas de Fernanda Morse
Fernanda Morse (1996) nasceu em Niterói e vive em São Paulo. Estuda Letras Português-Inglês na USP e escreve. Publicou duas plaquetes: a primeira em 2014, pela Coleção Kraft, da editora Cozinha Experimental e a segunda em 2015, intitulada impossíveis, pelo selo Cactus.
No início de maio de 2019 o poema “contágio” saiu em antologia publicada em forma de plaquete pela editora shivapress. Os outros poemas são inéditos.
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mecanismos de erosão
bem, pensamos que depois de lavar os pratos
estender os panos
e penetrar o silêncio
já não haveria muito a se fazer
mas há sempre um jeito de perfurar a casca das coisas
há sempre olho para se encontrar um novo vestígio
e corpo para despejar resíduos
exigindo dedicação
portanto não nos faltará trabalho
talvez só vontade
de devolver vida às coisas cansadas
de conviver com o imperfeito relevo do tempo &
seus mecanismos de erosão
podemos caçar palavras na praça ou
aprender a empalhar pássaros
mas como superar as entranhas
escorrendo pelas nossas mãos?
*
nada vale
nossos amigos
foram na lama
caiu tudo
misericórdia
essa não
desdobra
não desdobra
um sábio disse
“melhor morrer”
ele estava sentado e passava a mão em seu cabelo ralo
uma cabeça suficientemente grande para saber
“nada vale”
o que nos atrela
a um pedaço de terra
pode ser lavado
pela lama
você limpa a louça ou
se veste para sair pensando
o que deve fazer da sua vida
(DEPRESSA POR FAVOR É TARDE)
de repente
só há silêncio úmido, assassino
*
contágio
envio a mensagem sem texto no corpo
por isso você acha que não digo nada
eu que escrevia com as entranhas
agora escrevo com a ponta dos dedos
mesmo assim desejo deformá-lo
de repente penso: o mundo é bom
e me envergonho
quem pode acreditar numa coisa dessas?
as pessoas continuam querendo
pegar a luz ao seu favor
mas eu estou contaminada
desconheço a forma do bicho que se afoga
de perto mal saberia o seu nome
e só
porque aqui na beira do canal continuo
no escuro
ainda me pergunto o que fazer com os restos
os objetos que guardam aquilo que vai sumir
como some a consciência enquanto mordo os dedos dele
e digo bem baixo, rente:
penso em você
e isso é tudo
o que me resta
*
dezembro de 2018
em 10 minutos o sol desapareceu. o inverno pode ser divertido se você brinca de imaginar o rosto das pessoas por debaixo dos panos (ainda que os olhos sejam suficientes para reconhecê-las) ou de destruir aquilo que nem começou (como quando você afoga uma muda de lavanda que ganhou de presente do vizinho). são 13h e você diria, daí, que não passa das 10h. sou feliz porque falamos a mesma língua e também porque, para acabar com tudo, muitas vezes não é preciso dizer nada. pular no sena, por exemplo, pode ser lindamente silencioso. talvez você solte um breve gemido de frio ou desespero, como pode ter acontecido com Gherasim Luca, mas o que importa mesmo é que ninguém vai ouvir. o inverno pode presenteá-lo com seus garotos de meias bem desenhadas aos calcanhares em que nos sonhos você se joga. esse presente será uma espécie de tortura, preserve-o e veja como o calor também pode ser cruel quando contido. então o inverno dirá: derreta.