Quatro poemas de Heitor Ferraz Mello
Heitor Ferraz Mello nasceu na França, em 1964. Mora no Brasil desde os dois anos de idade. Formou-se em jornalismo e é mestre em Literatura Brasileira pela USP, com uma dissertação sobre a poesia de Francisco Alvim. Trabalhou muitos anos como jornalista e crítico de literatura, tendo colaborado em diversos jornais e revistas brasileiras. É professor de jornalismo e língua portuguesa na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Em poesia, publicou, entre outros, Coisas Imediatas (1996-2004), Um a menos (2009), e Meu Semelhante (2016), todos publicados pela 7 Letras.
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Amor
Deixou vários retratos
de todos os ângulos
Em cada um
o modo de ver o mundo
pelo avesso da risada
Não lembro se falou dos pés
desses que vejo
em grossas pantufas
Parecem esconder
as raízes do grito
os quilômetros de terra
as unhas enferrujadas
as horas percorridas
para espantar da memória
os estragos do amor
*
Uma rua em Cascais
Sempre o visito
em seus livros
Um certo ar abrasado
que se estica pelas folhas
Às vezes me sinto olhando de fora
uma paisagem imensa e contínua
e que muitas vezes sangra e vibra
Outras vezes
vou procurá-lo no Google Maps
Ando por sua rua
(indicação imprecisa de um amigo)
mas não sei direito em qual prédio
em qual janela
Havia um supermercado embaixo?
Gente andando na rua?
Vejo milhares de janelas ordinárias
mas em qual
uma caneta um caderno aberto a luz de um abajur
fazem estremecer o mundo
num átimo?
Em qual as coisas se transmudam
e tornam nossa matéria descartável
algo digno de ser lembrado
como um poema grego?
*
Dias difíceis
Enquanto te leio
Ingeborg Bachmann
tento resolver
problemas domésticos
como o registro da torneira
e uma goteira que não para
Poderia pensar que nada
disso fala de sua poesia
Que não há aqui
nenhuma chave misteriosa
entre seus poemas
e uma casa que vaza
vaza
interminavelmente
Talvez a banalização dos atos
Talvez essa sensação
que os dias se fundem
na parede
e que a linha da história
desemboca nesse vazamento
Talvez seja isso
o ato de uma aparente paz
quando outono manobra suas peças
querendo barrar
qualquer primavera
qualquer festa
em que beberíamos vinho
e dançaríamos felizes
até o amanhecer
*
Último poema
Caminho pelo estacionamento
as luzes se acendem automaticamente
Sou apenas uma sombra
um reboco
que se desprende da parede