Quatro poemas de João Carlos Pinho
Jão, ou também (como está registrado na identidade surrada na carteira do sujeito) João Carlos Pinho, carioca de nascimento, de S arrastado, sorriso frouxo e camisa do Flamengo (“um moleque do Brasil”). Desde que se lembra nunca dissociou a arte da sua vida, fato que o levou a cursar Letras do outro lado da ponte, na UFF em Niterói, e vomitar poemas entre uma olhadela ou outra pro trânsito de pessoas das duas cidades e de si mesmo.
***
Uruguaiana
Poças enlamaçadas
borram
os blocos
de terra, concreto e cal
quadrados disformes
formam um quadro de Paul Klee
que passou do prazo de validade
vendedores de guarda-
chuva
brotam
diversos
em suas capas de herói
obtuso,
o carioca reza uma praga
procura a carteira
e faz o pedido
“me vê logo dois”
desaba o mundo em Julho.
e o Rio de Janeiro continua sendo.
Croma
Quando ainda tinha
cheiro de livro novo
e não mais de talco
acreditava que os antigos
viviam em um mundo realmente em
preto e branco—
nada me assustava mais que pensar
no mundo das cores ainda não descobertas
a agonia
de viver sem o sabor
dos tons de azul no céu
do refrigerante cancerígeno
de laranja
na caneca pintada
com um personagem verde
de desenho animado,
ou
de nunca presenciar
Clara e Vitória
questionando
a cor exata
da quase branca
parede da sala
nessa ausência
da densidade do mundo
talvez
a natureza provesse a todos
de um tato hipersensível
d’onde residiria
no ser humano
o desejo infinito
—desejo: sempre do que
está ausente—
desejo
fomentado pela limitação—
o maior dos
estímulos
a arte seria sempre
tocável
amassável
dobrável
nada de linhas
para não se ultrapassar
nos chãos de museus
seria tudo permitido
exceto a violência
de só observar
e as palavras
se solidificariam no relevo
dos papeis
até que as coisas
ganhassem texturas
semi-coloridificadas
e o branco e o preto
diferentes tons de aspereza—
comeríamos de olhos fechados
posicionando nosso rosto
próximo ao objeto de desejo
face a fumaça de cada prato
pra sentir
seu leve toque
subindo o queixo—
o calor seria nomeado em escalas
milimétricas
de adjetivos precisos
entre frio, morno
e quente
ocupando os postos
da esclarecedora cromática
que vai
do azul ao vermelho—
buscaríamos
a dimensão ausente
na sinestesia possível
até construirmos um novo sentido
até que pudéssemos
ver,
depois de muito olhar pra dentro,
as cores do mundo
a minha sabedoria avançada
de criança
que ainda não desaprendera
a pensar
e no entanto falhava
ao enxergar nesse passado
inexistente
a projeção
de uma ausência
do carecer de algo
que nunca teria antes existido
como se no meu momento
de imaginar aquele mundo antigo
das fotografias antigas de vovó
de velhas filmagens
da Primeira Guerra
de filmes de Chaplin
e das primeiras copas do mundo
tornava
o meu universo
arco-íris particular
o marco primeiro
anterior
a qualquer coisa
seja que se precedesse
ou se antecedesse
e logo angustiante
qualquer passado
incolor revivido—
a arte
que faço
que capto
pelas minhas antenas
vibrantes e invisíveis
é como a cor que falta
em um mundo sem cor
é a exploração de um sentido
inativado
o tatear da margem
daquilo que é o próprio centro
o que me faz um eu
é
sempre
estar
em trânsito
em busca
—prazer agonizante—
de uma faísca de visualização
do encontro de retas paralelas
no infinito
—ou no finito que seja—
de me deparar
com um segundo de brecha
nas estruturas do real
e ver numa borboleta
primaveril
a sombra
de uma cor que não existe
Privado
Grãos infinitesimais
poeira que escala o dorso do pé
tateando as camadas de frio
o branco azulejo da casa vazia
o corpo é uma pedra
ricocheteando na superfície do lago,
encena fantasias mais íntimas que
a própria nudez—
a chuva e os reis da conveniência
fazem da tua espinha dorsal
uma robusta corda de contrabaixo
que vibra
com o sussurro do vento
tua pele mais sólida
e mais leve que um fantasma
Septo
Em um segundo de distração
focados os olhos,
estatizada a paisagem—
tapeamos Cronos
cê me lança aquele sorriso
e eu pisco o olho direito.
duas voltas o mundo dá.
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Anderson Libs
Estimulante estes trabalhos, estas poesias.
Parabéns aos realizadores!