Quatro poemas de João Innecco
João Innecco (1993) é poeta cantador, membro do Coletivo Transformação e dos Poetas do Tietê. Graduando em Pedagogia na Universidade de São Paulo, pesquisa o potencial da poesia como instrumento de educação popular para pessoas em privação de liberdade, atuando junto do grupo Sarau Asas Abertas nos presídios do Estado de São Paulo. É editor da Antologia Trans (Invisíveis Produções, 2017) e das zines independentes Fumaça (2017) e Tinto (2018). É poeta publicado na revista Poesia Sem Medo e nas antologias Além da Terra Além do Céu (Chiado, 2017), Veia e Ventania (Tietê, 2017) e Tente Entender o Que Tento Dizer / Poesia + hiv-aids (Bazar do Tempo, 2018). Em novembro de 2018, foi um dos poetas selecionados para participar do Mix Literária e da Mostra Textão no Museu da Diversidade Sexual (São Paulo).
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https://soundcloud.com/jpinnecco/baby
(para se ouvir enquanto se lê, de preferência com fones de ouvido)
baby
apesar do medo eu percebi sua calça cáqui – que cor era aquela? – a nuca a silhueta te desejei no ponto de ônibus esses lugares passageiros estão cheios de gente como você ou é coisa minha isso mas há sempre alguém voluptuosamente interessante passando ligeiro com calça cáqui com canelas de fora eu vi sua meia rosa eu tava te olhando apesar do medo você sabe você olhou pra trás pra ver ou desver sei que o nosso olhar cruzou apesar do medo de cruzar olhos nesses dias você sabe a gente parou pra se olhar ou isso é coisa da minha cabeça mas era a sua cabeça girando e me procurando dentro do ônibus te achei primeiro até a gente ter retina rente nessa distância que balança motorista, calma ninguém tá com pressa aqui todo mundo percebeu que tem um calor rolando olha de novo pra eu ver que não é coisa da minha cabeça da minha carência tô saudoso de toque é verdade por isso a paranoia mas apesar do medo e graças às deusas os homens que estavam atrás de mim acabaram de descer ainda há tempo? espero que não seja seu ponto porque apesar do medo eu aqueci no transporte público fiquei vermelho quente será que eu tô pensando direito? tenho medo agora que há fascismo escancarado nas esquinas eu queria saber você está se protegendo? porque flertar com você é gostoso mesmo sem palavra nenhuma assim na distância do busão balançando mas eu não consigo me desligar do fato de que pessoas como nós estão morrendo e eu nem te conheço eu só te achei lindo e se agora eu estivesse sentado ao teu lado interessado ofegante eu não te daria um beijo eu perguntaria você está olhando pros lados? olha pra trás do ônibus eu tô aqui e é importante olhar pros lados pra frente e pra trás até pra cima e pra baixo porque não se sabe quem estará de calça cáqui ou quem tem faca agora apesar do medo é imenso te encontrar e propor essa cama na cara de todos em plena consolação a gente sorriu um pro outro nesse segundo nessa segunda de medo e isso não é coisa da minha cabeça porque tá todo mundo com medo e foi você que virou a sua cabeça e levantou a sua sobrancelha e sorriu de volta quando eu sorri horrivelmente com medo eu queria poder sorrir solto contigo entre papos gemidos misturas escrevo num pedaço de papel um pequeno retalho um rasgo do meu caderno como você um rasgo da minha manhã pego esse papel apesar do medo e lutando pra não achar que isso é coisa da minha cabeça avoada chapada mas eu estou de cara vivendo isso eu juro peguei o papel anotei meu número escrevi meu nome desenhei uma flor nem contei as pétalas para saber se bem me quer se mal me quer dobrei esse pedaço exageradamente conferi 2 vezes e segurando na ponta dos dedos como se tivesse prestes a te entregar esse míssil essa muda essa mensagem com nada escrito somente como me encontrar minhas diretrizes revisadas meu jardim dobrado apesar do medo eu te passei o papel quando seu ponto chegou num aperto de mão agora perto demais não precisava tanto te entreguei o papel e disse cuidado na rua eu disse cuidado na rua eu só podia dizer cuidado na rua enquanto você guardava no bolso meu bilhete meu verbo de eco meu nome
cuidado.
*
a moça toda pintada
de pulso aberto em tatuagem
chegou me contando que um dia em sua porta
uma borboleta começou a morrer
em sua porta no limite da sua privacidade
uma borboleta caiu e precisou morrer
na porta da menina da tatuagem
de punho aberto um pedaço de vento deixou de soprar
e uma lagarta compareceu
a lagarta foi ao velório da borboleta
me disse a moça com todas as tatuagens
e falou também dos espaços dos limites dos cuidados
da música que tocou da água com açúcar que ela serviu e a borboleta bebeu
a morte da borboleta foi doce e a lagarta assistiu [não até o final]
engraçado porque
uma borboleta foi ao velório da minha mãe
não teve açúcar ninguém abriu a porta pra me ver morrer
mas a menina estampada me fez lembrar da borboleta que voou quando eu morri
na verdade eu não morri na verdade eu caminhei e respirei e pedi socorro mas morri e sigo jorrando a tinta desse desviver por entre todos os corpos que atravesso na verdade eu não morri eu caminhei por entre as flores caricaturas abelhas exumações
na verdade
foi minha mãe que
borboletou uma tatuagem de pulso aberto
não teve açúcar nem música
como quando a borboleta morreu
e a lagarta apareceu no velório e saiu antes da borboleta realmente morrer
pessoas foram ao velório de minha mãe e também foram embora
com certeza lagartas estavam presentes mas eu não me dei conta eu só caminhava eu não fui embora do velório do meu berço da minha parte raiz eu não podia ir embora porque eu morria junto
mas ao velório da borboleta na porta da menina tatuada eu não fui
até porque eu não sabia
dessa borboleta que morria
numa música específica
após beber água com açúcar
e o lagarto passar ficar sair
a gente cantou no velório
não da borboleta
o de mamãe
até porque nesse a borboleta voou azul
quando estávamos indo embora
aos prantos
exaustos de adeus
sem açúcar nenhum sem porta
nós lagartos
a gente cantou
*
1.
sonhei com minhas amígdalas inflamadas
pus e outras nojeiras escorriam e eu corria
pra espremer
em frente ao espelho
aberto
como duas fendas dois vulcões
minhas amígdalas enormes
engraçado porque já não tenho amígdalas
as tirei sob anestesia geral
em dezembro último
2.
sonhei com mamãe
e ela retornava brava
na casa antiga amarela onde moramos na infância
chegada do hospital onde morreu dizendo que era apenas uma brincadeira tudo
e eu a retrucava aberto
sangrado dizendo
do funeral do caixão que carreguei
dizendo
que ela não tinha
esse direito
de morrer
de brincadeira
numa madrugada
em maio último
sem anestesia alguma
3.
tenho sonhado com as inflamações daquilo que já não tenho
com essas partes que faltam as fendas
o apêndice que perdi já faz muito tempo logo depois de perder meu primeiro amor e antes de perder o território útero as roupas amuletos levados na paisandu na cara do palácio e da polícia ainda bem que eu não morri eram 4 fuzis
tenho sonhado demais com as perdas com as tiranias outro dia num sonho fui violentado por um homem enorme doeu eu gritei e chorei logo após perdermos o estado democrático de direitos
em outubro último
debaixo de muitas
muitas
mortes
*
não é a pátria
morta
o motivo do meu luto, antes
precisei chorar
muitas outras coisas não
foi essa morte
a que enfrentei quando
militares foram eleitos
com sangue nas mãos
foi em mamãe
que pensei que
agradeci estar morta
para não ver a pátria
morrendo
para não me ver
violentado
eu não consigo chorar agora
ouvindo os
gritos de horror pelas janelas as
armas empunhadas nos discursos
eu não consigo chorar
essa fenda na memória do país
esse aneurisma madrigal
não é a morte dessa pátria mãe gentil
o motivo do meu marasmo
o motivo do meu medo
antes precisei
chorar
meu ninho vazio
minha histerectomia
não é de agora
que venho enfrentando
lutas lutos
feridas sangramentos cirurgias
não é de agora
que choro
antes
precisei chorar
outras dores
não é a pátria morta
o motivo do meu luto