Quatro poemas de Jussara Salazar
Jussara Salazar é escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999], Baobá, poemas de Leticia Volpi, [2002], Natália [2004], Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008], Carpideiras [2011] com a Bolsa Funarte, O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas [2014], Fia [2016] e Corpo de peixe em arabesco [2019] Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
O último dos quatro poemas é inédito.
***
odília
Amanheceu
os barcos vieram
sentimos o cheiro dos peixes
recém colhidos
o cheiro do pão
saído do forno de barro
que a velha amassou
com suas mãos salobras
farejamos no ar
o tempo de fazer
do grão e da areia
o saber [oculto entre as águas]
o mar vai
o mar vem
em feixes líquidos
lavando o mal
fabricando
parindo
filhas e peixes do sal
silenciosamente
[um talismã]
[Corpo de peixe em arabesco /Ed. Omniscriptum e Ed. Kotter, 2019]
*
Itz en Caan, itz en muyal:
sou o orvalho do céu, sou o orvalho das nuvens
A cidade espalha-se tapete
ópera-cor bordeando o jade aquático
tudo azula seus colares e cocares
Montanhas rios
um vulcão boca de ouro
derrama-se sob o manto de ixchel
a velha lua demoníaca
Um leste vermelho para um norte branco
oeste preto ao sul amarelo
a árvore [verte generosa seiva nopal]
enquanto uma ave insana existe
– insiste a pluma turquesa escarlate –
e escamam peixes da prata nácar
da pele, anjos com asas de papel
moedas e um cabrito
esticado ao sol aguardam
Urdiduras tatuadas sob o manto real da señora iguana
que sorri, cabeleira negra açucena à mão
lírio rosado e pássaros
isso
mais o braço de cera decepado
por obra do punhal do Caballero S.
sangram y ornam
las alfombras de panamérica
[Natália / Travessa dos editores, 2004]
*
tessitura
quando surgir outra vez
a luz no final do túnel
sentirei amor por alguns
quando o dia amanhecer
entre os escombros
sentirei o calor das patas úmidas
depois da tempestade
pisando sobre o algodão
que brotará
da pele negra da terra
e sentirei amor por todos os lobos
que tramam seus novelos
nas xícaras dessa estranha noite
[Corpo de peixe em arabesco /Ed. Omniscriptum e Ed. Kotter, 2019]
*
pequeno bosque de árvores gigantes
eu
emigrante
abro a janela
para as serras marítimas
à frente
às terras
que se desdobram
[na languidez
amorosa e curva]
como uma cauda do mar
meus olhos alcançam seu corpo
e carrego
um dedal dourado
para não me ferir nas lanças
gigantes
espinhosas
da vegetação longínqua
vejo
ao fim da tarde
o ourives do sol
tecer um manto verde
como uma envoltura
sobre a cabeça dessas árvores
habitantes secretas da serra
às vezes as vejo voar
tornam-se leves
para avistar as barcas
passando além da sinuosidade
lá ao horizonte
eu
emigrante
me visto com os dedais do sol
para tocar o pequeno bosque
para trazê-lo
e navegar sua túnica
desconhecida
espinhosa
gigante