Quatro poemas de Leonardo Chioda
Leonardo Chioda (Jaboticabal, 1986) é formado em Letras pela Universidade Estadual Paulista. Estudou poesia clássica, história do teatro e língua italiana na Università degli Studi di Perugia. Pesquisa e escreve sobre simbologia e literatura e atualmente é aluno de mestrado em poéticas de expressão portuguesa na Universidade de São Paulo. Publicou Tempestardes (Patuá, 2013) e POTNIΛ (Selo Demônio Negro, 2017), apresentado na 15ª edição da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty. No momento prepara O Livro de Ouro dos Abismos e Cartas a um Jovem Oráculo, suas próximas reuniões de poesia e prosa.
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trabalho um ramo de poemas
e me dou conta do perigo de talvez ter em mãos
uma arma letal qualquer,
e de dar pouca atenção ao mundo
[que fica mais sombrio com o que escrevo]
porém, sendo uma qualquer
ou a mais letal das armas, sei que dela não se foge
como pede uma perseguição perversa — enfrentar é preciso
e com a devida força
[armado de silêncio] abater o perigo
vencer com muito esforço
e tão certo que se faz um incêndio
sobre o corpo
— e pela sagrada precaução vê-lo queimar até os ossos
como se fosse um assassino que sempre volta à vida
e assim assistir o ramo
sendo consumido até a essência
— a essência que, desde o rascunho,
já consumia o ramo todo
que o próprio fogo me perdoe,
que purifique o matadouro
e que eu, talvez conseguindo andar,
ainda que ferido [e queimado], reencontre e reescreva
à mão talhada
o meu rumo — o ramo eterno do crime
encerrado e reaberto pavorosamente sobre mim:
caso esquivado e arquivado
por ora como um trabalho legítimo de defesa
São Paulo, setembro de 2016
*
viver é um rasgar-se e remendar-se,
diria o Guimarães Rosa
porém, de acordo com o meu ortopedista,
a vida é sentar-se errado e ferrar-se
tenho de ‘reeducar a coluna desde já’,
eu que desde os 20, com a mesma mochila repleta de livros,
me arrasto de um lado a outro na geografia
— livros que não me aprumam
mas descem na minha estrutura
tenho de corrigir o porte
para não haver problemas no futuro,
como se não bastasse o agora
— tão dorsal
que vai passando e pesando a própria espinha dos dias
‘coluna ereta’ é um mantra,
mas se nem a terra é plana
nem as eleições serão diretas,
como pode
o poeta em riste
escreviver reto se as linhas tortas?
tudo é questão de postura, doutor, eu sei
há pouco desci tão fundo nos recessos da água
que mal aguento as costas
[e os maremotos]
mas é regra básica do poema: quem se curva demais se perde,
quem se estica atinge os espaços mais escusos do poço,
mas quem se senta direito
digamos que adianta a morte para dançar
— porque é sem graça
porque no começo ou no fim
essa é a verdade que nos escápula:
sentar errado é a vértebra principal dos mais livres
enquanto a via segue sendo o acidente,
vida cada vez mais jugulada,
organizada de modo primoroso
como se fosse a cabeça
o peso central de um corpo bem escalado a canto
no centro da cidade sem cura
é nada, doutor — o que pesa é o coração,
batendo ou explodindo
doendo dia sim dia não
assim vou pendendo para o lado dos fracos
e estranhos, inclinado forte para a esquerda
[avesso a todo golpe],
mesmo sem uma boa posição para lutar e descansar,
sempre com bons modos
mas sempre chegando
e sentando
escrachado no desconforto do mundo
a vida é um acidente, é verdade — e repleto de ossos
estreitos e chatos, verbos de ligamento
tão bem articulados
e tripas que [esticadas] vão tão longe quanto marco polo
ainda que sem o sentido veemente da rota ou da seda:
vida que é uma luta cervical
[sem cura], rasgada para um curto ou longo duelo de espáduas,
de nervo e remendo à glória corcunda
— só sei que a minha estrela é quando me estralo
e o tão pouco tempo para tanto peso
a verdade, doutor,
é que vamos todos tomar no cóccix
São Paulo, fevereiro de 2017
*
e morrer hoje
como morrem as abelhas depois de picarem uma criança,
como se contrai a xícara
sobre os livros na sala branca — tilintando,
a presença da finitude
de braços ilustres abertos na minha manhã
morrer sem pressa
enquanto morrem a louça, o papel, as abelhas
e a criança, tão alérgica, na cor da parede
— morrer de morte corrida
sabendo que bebo [como um bom budista]
a grande alta nuvem de bilhões e bilhões
que hoje é o meu chá de hibisco
posso morrer como se uma fagulha no vento
ou quando se morre uma estrela
— o mesmo brilho de qualquer fogo & o mesmo breu
que acende a ursa maior
morrer é um verbo irregular,
transitável entre as canas, dito hoje reto
em bom tom:
valioso morrer pela alta costura do acaso,
soltas as linhas
desfeito o pacto
no gerúndio
pela agulha de repente
da vida nunca se leva nada,
mas a vida que se leva
é sempre o dia certo para morrer
por isso o mundo não espera [aprendi com os monges]:
até segunda ordem, o mundo fica
ele todo se equivalendo para que não se acabe
— tudo nele tão bem pensado
para que caiba a morte num ferrão
supremo poder de poder morrer hoje — único
objeto da minha atenção,
da maneira certa de se espalhar no universo,
morrer à maneira cega
[derradeiramente] e tão à vontade
posso, ainda assim, flexionado,
mover o corpo como quem dá meia volta
contra uma parede,
encaminhado para o fim,
e estudar a parede
como se estudasse a origem de tudo
— entrar inteiro nela
como quem torna a ser feto [de fato]
e tão perto de bilhões e bilhões:
ser a parte toda
de uma parede
até que morrer seja ser por toda a parte
para morrer escolho o verbo estar com eles
[os bons motivos], um de cada vez
sem pressa
com toda a tensão de quem vem a este mundo
para vibrar no momento mais propício
desde sempre
se posso morrer hoje,
então como vivo este último dia da minha vida?
Veneza, dezembro de 2016
*
o belo bode negro diz que posso viver deliciosamente
que justo é cantar cada pecado regado a manteiga
como se fosse o último
— único moicano religado ao campo
tão reverso aos diamantes,
atado ao pacto que me mantém fiel à escrita: viver
deliciosamente
como se dança dentro do círculo traçado a rosa e alecrim
a dança macabra de dois antigos amantes
conhecendo o relâmpago
viver deliciosamente dado às palavras,
se assim fosse possível,
seria desconfiar cada vez mais do que é difícil
que difícil acaba sendo escrever
[à caneta] uma vida ultrapassada a limpo
e sapo, cobra, coelho
aranha e cabra
passam a servir ao meu melhor feitiço:
quero a visão perpétua de agora e de tudo
decifrado a fundo e alado nos enigmas da noite
porque o mundo recomeça no sereno
pelas minhas mãos
— as mãos talhadas de quem faz o pacto
ou escreve o poema,
e mãos e pacto e poema lidos no escuro
para atingir em cheio um coração em queda,
para viver [deliciosamente, me garante o bode negro]
enquanto ando firme no exercício,
na escrita extrema das energias vivas
que manejam as matérias,
que humanizam os minérios — a escrita
que me abre as palmas e jorra nos símbolos
o sangue o esperma a saliva
e a manteiga
quero a delícia de acender e flutuar [vivamente] sobre as fogueiras
como quem arde e resiste,
como o que encanta e jamais queima
Veneza, maio de 2017
(Foto: Giane Portal)