Quatro poemas de Leonardo Marona
Leonardo Marona (Porto Alegre-RS), nascido a 4 de fevereiro de 1982, publicou os livros: Pequenas biografias não-autorizadas (poesia, 7Letras, 2009); l’amore no (poesia, 7Letras, 2011); Conversa com leões (contos, Ed. Oito e meio, 2012); Óleo das horas dormidas (poesia, Ed. Oficina Raquel, 2014); Cossacos Gentis (romance, Ed. Oito e meio, 2015); Herói de Atari (poesia, Coletivo Garupa, 2017); Dr. Krauss (novela, Ed. Oito e meio, 2017); Uma baronesa às quatro da madrugada (poesia, Ed. Urutau, 2018).
***
agradeço aqui ao teu cigano
que me quebrou duas costelas
que me rompeu os ligamentos
e que me disse tantas vezes:
é perigo, afaste-se, curve-se
e deixe que ela viva em paz.
e eu nunca te deixei em paz.
eu nunca obedeci teu cigano
mas agradeço ao teu cigano
por te fazer mestra e mistério
da minha total insubmissão.
por este amor que acumula
poeira em nossa fresta comum
alguma geleira pelos cantos
dessa dor maior que costela
maior que ligamentos ruins
bem maior que eu e maior até
que o teu cigano, ai de mim!
essa poeira, meu amor, só existe
porque fizemos o nosso canto.
só se suja o que permanece vivo
e ainda não somos todo um pó
que nos faça duvidar dessa ideia.
eu nunca vi um amor limpo
mas vi muitos que na poeira
não souberam viver um dia.
teu cigano me exigiu pular
de olhos abertos e gritou:
vai doer, vai ser gigantesco
e vai ser impossível parar
se não for como eu quero.
deixe que ela viva plenamente
ele me disse e mesmo assim
eu me pus ao teu lado e falei:
anda comigo até no inferno?
acho que essa coragem cega
amoleceu o teu cigano de fé
para que não me trucidasse.
por isso agradeço ao cigano
e darei a ele um lindo colar
dos meus ossos mais sadios.
*
agora que estou triste
e pensando em desistir
sabendo que não posso
olho para os dois gatos
ao meu lado no lavabo.
digo que eles são meus
mas sem saber de nada
eles sabem que não são.
não sabem meus gatos
(esses que meus não são)
que é afinal o fascismo.
enquanto eu sinto como
se entrasse pela primeira
vez na disneilândia fatal
os gatos ficam na janela
tomando a chuva forte e
eles não se abalam nunca.
mas e quando formos nós
na janela sob chuva forte
o que será de nós então?
no sonho o famoso poeta
pacifista ele me torturava
me dava um esporro e ria.
acordo e olho os gatos ali.
se tremem não é por medo
sonham com a teta da mãe.
*
é preciso, com ternura,
saber ser destruído.
não pendurar holofotes
ou o pescoço nos erros.
aprender a tremer
se for para tremer
e dançar com vidro
dentro dos sapatos.
tu agora andarás
pelas ruas como
quem procura algo
no chão, em tempo
vais reparar: todos
caminham assim.
um balão de gás hélio, uma ternura,
vez por outra, em forma de coração,
escapará à mão da criança pequena.
pequenos seres que, maiores,
vestirão no teu lugar a coroa
de espinhos do teu egoísmo,
das vezes que odiou porque
não soube amar a ti mesmo.
agora ainda será possível esquecer
– das largas ruas escuras da tua
esperança sem parentesco virá
o velho vento frio da paranóia
ao meio-dia da maior escuridão.
nem de longe será a primeira vez,
mas é a tua vez e é sabido: pesa
sempre mais nos fracos como tu.
nos que sabem no que acreditar,
mas não sabem ainda quem são.
e pensar que tu ainda tens
dois gatos e um amor prometido.
é preciso saber escorar a queda
no quarto fúnebre do espírito:
saber teu destino de alma parda
e tua falta de fome sem pânico
já é sinal de manicômio à vista.
o caos que se apresenta é como
um bolo de chocolate
no paladar da tua oferenda.
nada a dizer,
cansado de escutar,
um amor apenas.
com uma pedra acaricias
a nuca do teu destino.
é preciso estar
de olhos bem abertos
quando se perde a visão.
mas não tem agora tirésias
no refugo do tempo escasso.
cada um de nós andará sozinho
com cada um de nós no bolso.
inventaremos novos códigos,
talvez o fascismo ainda tenha
algo incrível a nos ensinar.
até aqui carregaste contigo
uma hiena no peito e apresentas
todos os membros completos:
precisa ser suficiente por ora.
delicadamente tu levarás o tombo
sem poder ser ainda um especialista.
fará girar com muitos outros a corrente
lubrificada com sangue quente e fezes
de poucas grandes famílias louvadas.
é preciso, com ternura, comer as fezes,
dirão em breve, haveremos de tampar
os narizes e, fanhos, cantar outra vez
a fraternidade entre os seres humanos,
a boca sem feiúra da fome aniquilada.
*
aposenta aqui tua pena que te esqueceu
e mesmo as palavras que usarás agora
não dizem nada e nunca disseram muito.
resvala a língua no cinza brutal da seca
com que te proteges de um mundo ruim
por entre as chances pálidas de um vulto.
sorri ereto a fórmula que te abandona,
fecha os olhos e sente tuas veias fracas.
agora amas e precisas aprender a morrer.
talvez agora seja preciso usar a força,
então faz a prece íntima da tua dúvida,
corre até o abraço do impossível degelo.
é tempo de sorrir aos pálidos pela cor
que o futuro retirou de ti antes mesmo
de poder asfixiar o presente com táticas.
que gelada é a planície do teu afeto, qual
cataclismo implodirá tua face no vácuo
coletivo de todos os planos do mundo?
o vermelho escolhe sempre qual a cor
do sacrifício na escuridão de uma vitória,
quando cada um goza sozinho o que vem
depois bater à porta em cobrança de paz.
quanto não te custou, surda, a paz da tua
autocelebração doentia agora que já vais
pelo ralo com todas as tuas promessas?
na sombra dos dias felizes de flagelo
inchava o monstro vestido de solidão.
o vermelho do teu martírio no adesivo
em busca de um porrete ou um abraço.
aperta o teu melhor sorriso e deseja isso,
que apertes até o fim teu melhor sorriso,
na jaula temporária do teu maior medo.