Quatro poemas de Lilian Sais
Lilian Sais é escritora e uma das fundadoras da plataforma de ensino Literartéria. Doutora em Letras e pesquisadora e tradutora da área de grego antigo, é paulistana de nascença e fumante assídua por opção. Leitora voraz da literatura brasileira contemporânea, gosta de samba, cerveja e poesia e é defensora da boemia, de piadas ruins e das conversas descompromissadas de mesa de bar. Os amigos dizem que é uma peste, mas que cozinha bem. Ela nega.
***
não é de tudo
que desisto,
mas de certa
qualidade de acolhida
ou entendimento:
ainda que encolhido
cabe a cada órfão
carregar com presteza
seus próprios cadáveres,
mesmo depois
de sepultá-los.
assim carregamos
os amores, e os sonhos
de amores, e a chama
dos amores que colhemos
com insistência antes de
desistir,
carregamos o cheiro
de um bolo de café
saindo do forno
às quatro da tarde,
e todas as palavras
de todos os livros
lidos e as lembranças
dos momentos vividos
e dos abortados,
carregamos o acidente
de vô e de vó e de pai
e de mãe que nós mesmos
somos, então carregamos
todos os passos
de todas as léguas
percorridas
e
até hoje desconheço
epíteto melhor
para deslocamento
que vai de norte a sul
que tirano,
seja metro, légua
ou palmo.
(poema sem título, da plaquete Passo imóvel, Editora Cozinha Experimental, 2018)
*
aniversário
tenho mais anos
que dentes:
dos dentes eu perdi
um, em golpe,
os anos eu gastei
todos, em cárie.
percorri as vias
do afeto, pelo gargalo,
mas nunca tive
um cão ou filho,
nem mesmo acumulei
dinheiro ou bens,
mas digo
se tivesse um gato,
certo seria cinza
:
não é que viver
não valha,
é só que tudo
exige labuta,
quando mais longa
a rota
maior a fadiga
na retina
absoluta.
*
trítono
Para Teofilo Tostes Daniel
porque grávida
de ausência
urge o sorriso grávido
de alguma falta,
ruído grave, gestando
o impronunciável,
urgem lábios, margens
obscenas da inundação
possível, sorriso
discreto, palavras impressas,
parto, farol de ruas
sem esquinas, ruas-rio,
(quero morar numa cidade sem esquinas,
meus olhos ardem,
tenho uma pasta de urgências dentro de uma pasta de urgências dentro de uma pasta de urgências,
o corinthians foi campeão,
o preço dos tomates & a crise política & a meteorologia)
há meses
(são apenas dois olhos
duas pernas e dez dedos para tantas
urgências no mundo que,)
transbordo.
– porque grávida
de alguma ausência
que o CID
não gera
entre as margens
absurdas da normalidade
o abismo
fere e confunde,
meu bem
*
Manual Pornodidático para Homens – Uma amostra
I –
raros são aqueles
que me beijam a sombra
entre as coxas:
pra maior parte sou apenas
buraco penetrável,
boca, cu e cona,
chegam logo me enfiando a rola
em dez minutinhos
de estocada frouxa
e está acabado:
meus caracóis ainda secos
e o macho já vira de lado.
pra um dei um manual
de anatomia, bem explicado,
mas ele entender zona erógena
foi trabalho de parto,
e meu metro de busto
permaneceu intacto.
tudo que digo agora é
vida longa às pilhas,
porque não anda fácil:
esse jeito de foder,
meninos, está todo errado.
II –
pra homem tudo é uma questão de falo:
se a vara falha, a noite finda
eu a vida toda me queimando,
ávida, só com dois dedos em riste,
e o menino com dez não faz
nada, me deixa triste.
eu chego em casa frustrada
e mando o burro comer alpiste
– meu bem, de sexo ruim já estou passada,
foi a última vez que me despiste.