Quatro poemas de Mara Magaña
Mara Magaña é jornalista (Cásper Líbero) e fez letras na USP (Português-Espanhol). Iniciou mestrado em Literatura e Jornalismo e em Políticas Públicas de Educação, também na USP. É escritora, poesia e conto na linha de frente, mas prepara um romance para breve. Vencedora do concurso de Minicontos de Guaxupé, em Minas Gerais, com “Incesto”, e do Mulheres entre Letras (Dow-Química e Senac), que gerou uma coletânea em que constam “O Dia em que os Anjos Caíram” e “Ordenação dos Séculos”, ambos nos anos 80. Participou do livro Fruto Mulher, lançado em 1982, com várias poetas que marcaram seu nome na literatura, como Rosa Maira Mano, Ruth do Carmo, Maria Elisabeth Cãndio e outras. O lufa-lufa diário a colocou no front do jornalismo, onde trabalhou intensamente por mais de 25 anos. Mas a literatura sempre esteve presente. Agora, definitivamente.
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sesmaria
sou antiga
tão antiga
que quero ser tua
emaranhar-me no todo seu
necessito de bocas se mordendo mais que o beijo
de mãos se procurando no quase aconchego
dos olhos na noite e a noite ao vento
quero ser tua
na hora da calmaria
e da tormenta
na hora do parto
e da morte:
quero ser tua infinitamente
sou antiga
tão antiga
que quero que sejas meu
todo meu
para que eu, sesmaria insana e seca,
te engula até a raiz:
e me renasça livre e fresca
*
femina
I
tenho um sertão
dentro de mim
que me sabe agreste
seca disseca
e me revela
cacto
tenho uma mata
crescendo em mim
que me insurge em sombra
enlaça entrelaça
e me encontra
imane
tenho um mar
espocando em mim
que me põe à deriva
suga subjuga
e me torna
concha
luzeiro clarão farol
sou mandacaru araucária palmeira
II
e que mais posso ser?
harpia
ninfa
sereia…
serei antes
aniquilação
assombração
arrebentação
ou nada:
talvez mover-me
sinuosamente
apenas
*
entrega (ou livramente livroamante)
diante de ti sou toda súdita
rei absoluto de dias e noites
desvendei segredos e mistérios
conheci a beleza e a estupidez
e assim ordenei guerras e paz
déspota insana e pródiga
a mergulhar em teu mar parideiro
(achava que só eu me fazia sereia
para teu deleite
na meninice de minhas descobertas)
mas te mostravas faceiro
e lânguido e aventureiro
engendrava-me com ternura e encantamento no último momento
quando as luzes se apagavam
e me restavam apenas os devaneios
a respiração ofegante
por ainda não te possuir inteiro
– renascia todo dia
porque te sabia à minha espreita
eu púbere e casta
tu sultão de mil anos
a levar-me pela mão ao arrebatamento
foi assim que me iniciaste
: destino gravado em mim
antes da primeira palavra
do primeiro medo
do primeiro espanto
do primeiro amor
antes mesmo da minha existência
e prosseguimos amantes tórridos
tresloucados perseguidos
e se te perco por instantes enlouqueço
que sem ti não resisto
nem sei da vida ou simulacro dela
(essa que finjo e nela permaneço)
por ti me fiz andarilha
e poli minhas botas de sete léguas
em ti afiei língua e espada
recusei tronos e coroas
enfrentei saaras e pacíficos
me faço desfaço refaço
e me revelo
(só a ti)
assim quero seguir até o fim
– o meu
porque tu continuas
com teus amantes
de sexos indecifráveis
a reproduzir-me
a reproduzir-se
eternamente
*
história preta
preta
de pernas pretas
alma preta
coração preto
preta de lembranças pretas:
senzala açoite catre
de meninas pretas
e meninos pretos
paridos nas noites pretas
(de matas pretas
encobrindo pretas intenções
de pretos perseguindo pretos)
preta
na casa grande
de damas brancas
corações brancos
almas brancas
ordens brancas
filhos brancos
raiva branca
branca demência
(e o silêncio dos falos pretos:
brancos ventres
nas camas pretas)
preta
da cara preta
tetas pretas
sexo preto
arte preta
língua preta
fala preta:
pretos caminhos
de um destino preto