Quatro poemas de Márcio Monzilar Corezomaé
Márcio Monzilar Corezomaé é indígena da etnia Balatiponé-Umutina de Mato Grosso. É professor da rede estadual de ensino e mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, onde defendeu sua dissertação baseada nas narrativas míticas de seu povo em 2018.
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Mistikamé? (Quem é você?)
Sou descendente da linhagem
De antigos guerreiros
Dono dos rios, das matas, dos campos.
Minha história é mais que antiga
Vem dos primeiros organizar dos tempos
Quando nada ainda não foi criado.
Minhas lembranças são de boas caçadas
Pescarias fartas
Imensos roçados.
Sou Marê Umutina
Nascido no tempo difícil
Da incerteza do ir ou ficar.
Do tempo que massacra
Minha vida nossas vidas
A troco de nada.
Ganância, poder, nada justifica
Se o que fica
É a desolação.
Tenho em mim a força
Herdada dos meus ancestrais
Chamados sem almas
mas sabem amar.
Principalmente os velhos as crianças
Um é adormecer
O outro nosso despertar.
Minha religião é mais que sagrada
Equilíbrio entre o que tenho
E o que faço
Se passo há sempre forças ocultas a me espreitar.
Não quero diplomas, nem méritos nem honras
Só quero respeito
Por não ser perfeito
diferente apenas.
Não sou exótico
Palavra difícil
Sou humano, sou gente
Sou Marê Umutina aqui termino.
*
Sabor de infância
O canto do sabiá é o mais belo de todas as aves
É mais belo porque tem sabor de infância
Esse canto tem poder de fazer viajar no tempo
Tempo de amor e paz.
Lembranças de uma riqueza pobre
Onde tudo está em seu lugar
Um pai, uma mãe, uma casa.
Um quintal para regar todas as manhãs.
A madrugada chegava serena
Acordando os pássaros os adultos
Som de pilão, cheiro de café
O calor da velha coberta.
Nesse tempo tranquilo
Tínhamos em frente de casa uma laranjeira
Com a madrugada vinha o sabiá
Cantava, cantava era hora de despertar.
Levantava e via meu pai
Um balde ia até o rio
De planta em planta
Começava a regar.
A mim o maior e melhor exemplo
Por isso gosto de plantas
Sei, era uma lição dada
Na ação do silêncio.
Até os primeiros raios de sol
Lá estava o sabiá
Com o seu canto melodioso
Decerto para congelar esse tempo.
Hoje quando o sabiá canta
É para a infância que volto
Sei que vou encontrar meu velho pai
E suas grandes lições em simples gestos de cultivar.
*
Tem tudo a ver
A poesia…
Tem tudo a ver com minha vida
Meus longos cabelos lisos são os rios que nascem e correm banhando a terra,
Às vezes calmos, às vezes rápidos.
Os meus olhos são os olhos dos pássaros ou das feras
Minhas pernas são ligeiras como a dos animais corredores
Me sinto assim por fazer parte da natureza.
Por sentir bem assim
A tecnologia me assusta.
Não entendo como as máquinas podem produzir tantas coisas em tão pouco tempo
Ainda assim existir tantas coisas ruins no mundo
Tanta fome, tanta miséria, tanta falta de esperança.
A vida dos meus antepassados foi melhor
Melhor no sentido que a vida tinha mais sentido
Hoje estou aqui, neste mundo, nesta realidade.
Não sei se daqui a alguns anos terei ar para respirar, terra boa para plantar, rio para pescar, água pura para beber.
Estou aprendendo que tudo depende de mim, preciso fazer as coisas certas;
Simplesmente por amar minha terra e meu povo.
O que quero para meu povo é um futuro de fartura
Fartura de alimento, fartura de sabedoria, fartura de união;
Talvez seja querer demais;
Mas é isso que estou aprendendo,
E por isso eu vou lutar!!
*
Riquezas
Era um menino que de riqueza não tinha nada
Ou era um menino que de riqueza tinha tudo?
Desde cedo aprendeu a fazer amizade com passarinhos.
Porque amava a liberdade do vento, do pensamento, da natureza.
Na densa relva apreciava as cores das flores.
Seu perfume e seu frescor que a tudo encanta
Gostava de ser meio bicho, meio gente.
Pois, assim sentia-se feliz em meio a naturalidade das coisas
Porque aprendeu assim com os camaleões.
O seu rio-aquário era o mais lindo do mundo.
Pois lá podia brincar com lambaris, carás, piaus
E tantos peixes minúsculos.
A água de tão transparente
era indefinição de onde começa a terra e o céu.
A mata de cem tons de verde camuflava vidas invisíveis.
Havia vida nos galhos dos velhos jatobás
Como nas raízes das samambaias.
Nesse universo que a tudo se completa
O menino era feliz.
E foi assim que ele inventou a sua e tão somente riqueza.