Quatro poemas de Mari Matos
Mari Matos (1991, São Paulo/SP) é uma poeta e escritora que começou quase por acidente e muito despretensiosamente. Fala sobre as violências e afetividades que atravessam a vida da mulher negra. É formada em psicologia e possui mestrado pela Universidade de Glasgow.
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Meninos abafaram minha voz
Desde a escola
Voz que não sai
Entala
Engasga
Sufoca
Tentaram me matar de diversas formas,
mas a mais eficaz foi com as palavras que me fizeram engolir
Eu via a cara branca do professor que me olhava depois de pronunciar meu nome na chamada
Enquanto eu tentava dizer Presente!
Abafada pelas vozes brancas
Cheias de costumes brancos
De me animalizar
Vozes altas que não me permitiam anunciar a própria existência
A voz
Que desaparece
Atrás de gritos
De bocas brancas
Cheias de dentes brancos
Violências brancas
Se a morte tivesse cor, branca seria
Pois os brancos matam a minha presença
Depois de anos suficientes disso
Eu já teria tanto medo de falar
Que não saberia
Qual é o som da minha própria voz
Mas estaria rodeada de vozes brancas
Presente!
É o que se grita nas manifestações após o nome das nossas mortas assassinadas
Presente!
É o que grita o peito enquanto alguém enfia lixo no meu cabelo na carteira de trás e eu não tenho a coragem de confrontar
Presente é o que se ganha em datas especiais
Presente é o que eu sinto que ganho toda vez que uma mulher negra quebra silêncios
e muitos presentes já recebi.
Meninos brancos sentem medo das vozes de meninas negras, com cabelos negros, histórias negras, verdades negras, magias negras
Se pudesse ser presente, eu destruiria tudo aquilo que eles chamam de civilidade, superioridade, conhecimento
Botaria no chinelo e,
acredite, eu sinto vontade de lhes bater
Como meu coração bate dentro de mim enquanto tento gritar um Presente!
que sai gaguejado
fraquejado
suado pelo esforço de se emitir o som
que encontrou tantos obstáculos no caminho até a boca
Voz
Para ocupar o mundo
Isso seria meu presente preferido
Enquanto eu escrevo esse poema,
Imagino voz
Sonho voz
Gozo voz
Me encho de voz
Minha
Própria
Voz
Procuro um ouvido para escutar as vozes das meninas negras que moram dentro de mim
Você teria um instante?
*
Às vezes, eu quero desaparecer
Pele
Útero
Cabelo
Unhas
Pés
Um corpo inteiro que some
Pois quando aparece
apanha
Se fala
apanha
Se silencia
apanha
Se corre
não tem para onde ir
Se fica
não cabe em lugar nenhum
A não ser que apanhe
Para apanhar serve
E para servir também
Para levar bala então nem se fala
Uma atração natural entre o corpo negro e a tal da bala
Tanto que às vezes vem 80 de uma vez
É melhor não reclamar
Senão apanha
Branquitude é tão frágil que com qualquer peteleco se dói
E se não quebra é por que a gente de tanto apanhar parou de acreditar na própria força
Gasta tudo pra sobreviver
Enquanto apanha
Esse poema não é de luta,
Pois tive luta ontem
Talvez a tenha amanhã
Mas neste momento não tenho mais
Por que meu luto nem sempre é luta
Às vezes é só substantivo mesmo
Querem me dizer que eu preciso me fazer em luta
Uma luta constante
Tem horas que ela acontece
Em outras, o luto toma conta de mim
Me dê o tempo de uma noite
Para desaparecer em mim
Enquanto que eu me dou um afago
Que ninguém mais pode dar
Amanhã luto
Pode ser verbo, substantivo ou os dois
Só sei que acordarei mais humana do que ontem
Por isso mesmo
É bem capaz que carregue um sorriso na boca
E lágrimas nos olhos
Junto das feridas no corpo que sempre reabrem
E eu pacientemente todos os dias volto a cuidar
*
Você vem me falar
Da sua paz
Sendo que para mim
A vida sempre foi
Uma luta
Pelo direito de existir
*
Chamaremos a alegria de pecado
A solidão de tristeza
A liberdade de ignorância
O abuso de amor
E o amor de ilusão
Viveremos em guerra
Pois se não podemos escapar a finitude
Lhe impomos com as próprias mãos