Quatro poemas de Meimei Bastos
Meimei Bastos é autora do livro Um verso e mei, educadora, atriz, coordenadora do Campeonato de Poesia Falada do DF & Entorno e do Slam Q’brada. Graduada em Artes Cênicas e mestranda em Culturas e Saberes, pela Universidade de Brasília. Atua em diversos movimentos sociais, promovendo saraus, slams, oficinas, debates, cineclubes e rodas de conversa, especialmente direcionados à população negra e periférica. Publicou seu primeiro livro, Um verso e mei, Editora Malê, em 2017. O livro está em diversas escolas públicas do DF e do MS, pelo projeto Mulheres Inspiradoras. Premiada pela Secretaria de Estado e Cultura do Distrito Federal em 2018 com o prêmio de Cultura e Cidadania, na categoria Equidade de Gênero e em 2020 com o prêmio Aldir Blanc, na categoria Literatura, Atualmente, a autora coordena no DF o espaço cultural “CARACAS, véi”.
***
como sei que cresci?
tem vez que eu paro
e vejo uma casa
uma menina
e eu
por dentro,
ainda que eu me sinta miúda,
me faço de grande.
aqui, tudo depende de mim
e não adianta eu erguer os braços
como quem clama à deus,
não, sou eu e eu.
é 24/24,
de segunda a segunda.
não tem dia de folga
desculpa
intervalo
atestado
se eu não trabalhar a gente não come
não mora
não veste
não banha
o básico depende de mim
e eu escrevo poemas
me alegro por não sentir mais medo
do escuro
tem uma criança ao lado
que me chama
mãe
não posso falhar
com aqueles olhos
e eu me exijo
não me libero
me repugno
não tenho pena de mim
eu não posso errar
como eu sei que cresci?
quando o meu desejo
era de caber em um colo.
*
num instante o peso de séculos
uma menina
de braços delicados
olhar profundo
pele de ébano
lindo o crespo laço
de seus cabelos.
linda ela.
sentada no fundo da sala,
no fundo da história
me olha
disseca
questiona:
o que você fará por nós?
não sei.
escreverei um poema profético
como quem joga
as cartas
lê a borra
e decifra estrelas.
não mais poeta.
Profeta
anuncio:
serás rainha,
menina.
não mais as copas
não mais arrastada
não mais o sub
seu lugar será o trono.
*
Olugbala
sentada no ônibus
eu o vi
descendo a Catedral,
entre o grau 15° e 20°,
da cidade sonhada.
ele, parecia um raio de Sol.
nas minhas vistas,
miragem,
sonho.
ainda que triste
o cenário.
o chinelo gasto,
quase descalço, no asfalta pelando quente,
atravessava o mar de carros.
os vidros, de súbito
fechavam.
ele olhava
como quem diz:
perdoe-os,
eles não sabem o que fazem.
parecia carregar
a caixa dos milagres do mundo.
oferecia-os como se fossem balinhas,
doces.
cruzou a rua.
contou as moedas.
o vi repartir a água
e o salgado com seus iguais.
sorriam como se fosse banquete
como se a dor jamais fosse voltar.
senti no peito
um desejo tremendo
de pô-lo em meus braços,
de carregá-lo no colo,
de acariciar seu rosto e
massagear seus pés pequenos
e cansados.
pedir-lhe perdão
à inocência roubada.
eu vi
no semáforo,
uma luz.
era Jesus,
e ele era um menino preto.
*
Auxílio Emergencial
escorreu as mãos no rosto
tirando o suor impregnado.
ajeitou as ferramentas certo
do dia seguinte.
bateu o ponto num inspiro
aliviado.
caminhou pelas ruas.
passou pela rodoviária.
viu no CONIC indiferentes
as moças, as travas,
as crianças com suas
máscaras de cola.
entrou em casa despercebido
pelo cachorro.
jogou-se no sofá murcho
de cansaço.
tragou impaciente
um Marlboro vermelho.
às 22h, desligou a TV amargurado,
não aguentando mais no ouvido
covid.
foi ter com a insônia uma noite lacerante.
despertou xucro,
resmungando, indignado:
não há lockdown
pra quem não mora no Lago.
trocou-se rápido para fugir do trânsito.
fumou desenfreado até a faixa vinte.
no primeiro ponto respirou forte;
no segundo já sentia o peito ardido;
no terceiro, foi quando todo o ar já tinha ido.
horas depois,
do auxílio emergencial
em análise, o status:
falecido.