Quatro poemas de Milena Moura
Milena Martins Moura é mestre em literatura brasileira pela Uerj e tradutora. Autora dos livros Promessa Vazia (2011) e Os Oráculos dos meus Óculos (2014). É também cantora e compositora, autora do EP Flamboyant (2018). Publica poemas, fotografias e pinturas no perfil de Instagram @oraculos_dos_oculos.
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Quem bate?
AJEITA primeiro a calcinha na pele
gruda na pele
não não saia
não se mova
depois corta a etiqueta
rente mais rente quase rasgando
isso melhor
veste a blusa checa se pinica
pinica
troca
a meia ajusta nos dedos
tem sobra
tem sobra
não pensa em mais nada
só o pé existe
a sobra de meia no canto do dedo
tira o sapato
de novo de novo de novo
ajusta e tenta e ajusta e tenta
para sair é preciso checar as janelas
as luzes o forno a porta do banheiro a comida dos gatos
pontiagudos que possam ferir os gatos
as telas os vidros as panelas a geladeira os ventiladores a comida
empurrar três vezes a porta para ter certeza
fechou
e conta reconta conta o dinheiro
será que vai cair moeda
reconta conta
o ônibus vêm
será que caiu moeda
paga entra
escolhe escolhe escolhe
ali não porque a janela é bamba
ali não porque atrás tem alguém grande
o joelho nas costas o incômodo
ali alguém dorme ronca
ali a mulher com a bolsa muito grande
ali alguém mastiga chiclete
aqui aqui é bom e senta
entra gente e mais gente
coração pom pom pom
liga a música abafa abafa
abafa o mundo com música
e checa o coração
pom pom pom
checa a carteira na bolsa uma
duas
três
mais algumas vezes
checa se a roupa está no lugar
checa o cabelo os olhos as unhas
os sapatos as calças
hiperventila quando alguém lhe pede as horas
e na hora de saltar
espera espera espera
e sai por último
para que não lhe encostem
chega ao trabalho exausta
são sete e meia
dão-lhe bom dia e esperam que responda
cansaço cansaço
tomam-lhe por antipática
arremessam-lhe indiretas
cansaço cansaço
são sete meia e o choro
o choro
quente úmido ácido e afiado
já derreteu tudo por dentro
sem derramar nenhuma gota
engole respira
tenta sorrir
falha forte
deixou em casa a máscara de forte
junto com as dúvidas o acolhimento e a alegria
e ainda nem é meio dia
Ecollalia ia
CÁ o teto anda seco
roubaram as estrelas
estrelas estrelas
nesse chão frio nesse teto seco
eu deposito o medo
medo medo
repito três vezes
antes da desgraça
desgraça desgraça
sou uma cópia da cópia de gente
mastigando o excesso de dentes
em refeições feições feições
eu imito feições
mordida nos braços
mordida
mordida até o sangue verter
não me perguntaram
se eu queria nascer
a maldição passada adiante
adiante adelante forward
eu carrego nessas costas frias
todos todos os dias dias
No fundo do poço a acústica é ótima
ESCONDO o rosto entre as mãos
feito monstro envergonhado
e molho as mãos com os olhos
pinga das mãos
o sumo dos olhos
machucou-me o não entendido
a falta de esforço
eu não sabia que era possível ser desse jeito
foi tão tarde que descobri
não estar sozinha
tarde tarde
tardemais
não adianta mais
meu corpo uma jogada
toalha
cada palavra
falha
fenda pulso rachado
crânio amaciado no golpe
qual de segunda
carne
eu não sabia que era possível
a incógnita
o ritual
acordar escovar dentes me vestir
aceitando
olhar vinte vezes o interruptor
o ritual
agora é tarde
tarde
já sufoquei no meio de uma tarde
ressuscitei para tomar o chá
e voltei à morte para a tranquilidade do senhorio
tarde de sol
na sombra
tão branca que chega a brilhar
a pele
esconda-se ou vão saber que você existe
esconda o rosto entre as mãos
terror
invento uma desculpa e saio pelo canto dos olhos
quem me vê levantar não faz questão de pedir que eu fique
cinquenta quilos
cimento
as costas são fracas para o meu peso
e as águas estão quietas
não há mais ninguém no escuro desse poço
Espectro
O LUTO parado lá fora
em carro preto
nascer errado é quase morte
desculpa
é o nunca saber
perdoai
vir ao mundo é sempre à própria revelia
um anjo azul de barriga na terra
serpente
abaixo da linha dos olhos
não se exige contato visual
forçar a boca os dentes sorrir
estar de pé apenas no limite da força
ninguém está ouvindo?
esse barulho barulho
bate com as mãos na cabeça
bate a cabeça nas quinas
pune a cabeça o corpo as mãos
vem daqui a maldição
soco
a dor a dor
mãos nos ouvidos
e já lhe arremessaram as alcunhas de hoje
semimorte
o ódio
é o som do mundo
desce as costas na parede
gota
as marcas nos braços
escolhe um canto do quarto como refúgio
e ninguém vem com braços largos
remendar-lhe as asas
existir assim em suspenso
esperado a morte
é quase morte
oferecer fruta do conde
por não gostar de maçãs
e já lhe arremessaram as culpas de hoje
flerta com os olhos do luto pela janela
mais um dia
ele devolve um aceno
à espera
o paraíso é um desenho na parede
que já estava ali quando eu cheguei
José Tadeu Gobbi
Eu hesito, milena, mas no fim, gosto do seu estilo.
Gosto de como desenrola os temas.
Muito bom.