Quatro poemas de Otávio Campos
Otávio Campos é um poeta e editor nascido em Leopoldina (MG) em 1991. É mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. Publicou os livros Distância (2013), Outros tipos de disparos (2016), Os peixes são tristes nas fotografias (2016) e Ao jeito dos bichos caçados (2017).
***
Na fila do Café Muzik
Por ora nos fins de semana não enviar
a mensagem ao Pedro porque o Pedro o próprio
se assusta e se recusa a receber
ao telefone protestos e as coisas que trotam
Nós estamos tomando as ruas da cidade
o plano fechado em dois dos personagens
secundários dançando com os copos de lado
porque é tarde e construímos uma linha
Porque estamos na fila outra vez e a esperança
de que ela siga adiante se esgota
Quando você abandona a casa e esquece
os sapatos na medida inexata dentro do quadro
é provável que você pense primeiro
nas drogas que viemos tomando no meu nariz
que se abaixa dentro do carro e o acidente
no fim do percurso. Primeiro eu me espelho
e me espanto com sua cara de assombro à plataforma
Porque estamos na fila do Café Muzik e não penso
na bomba, nós não pensamos na bomba mas no fim
do tédio no fim do medo e na ataraxia
Nós pensamos nas coisas que correm pelas vias
de dentro na incrível capacidade do mundo
de se expandir e depois voltar como eram
as coisas que não devemos nos contar já que somos
completos desconhecidos dividindo o percurso
As mãos pela garganta a língua que sufoca
o beat do corpo que vibra e procura na cidade
outra ponta da chance de que aquilo dispare
*
Você triste pensando na internet
Você ri de todas as cartas que não foram enviadas
A você
A passagem sem graça dos anos
Ergue o místico também seu corpo
Somos nós os que não acreditam
E toda desculpa passa pela palavra
Mercado
Você de costas pensando nos filhos
Que nunca teremos
A quem pretendemos ensinar
Os mistérios as casas
A serem derrubadas
Você ri de todas as crianças que não correm
Para o futuro
Porque elas estão mortas
Porque elas são os filhos dos outros
Menos os nossos
Segredos de enfrentar a família
Esta que não dividimos
Como todas as outras
Coisas tristes que passam pela cabeça
Dos meninos do nosso tempo
Assim como
Você cansado de jogar a bola
Você cansado de fingir
Jogar a bola
O movimento exato dos corpos
Que vibram e voam
Nós dois
Sempre rindo dos que elogiam
A beleza atlética da competição
Sempre duvidando do ponto
De contato entre a beleza e o jogo
Daí que não se espera a palavra
Amor
Porque nós nunca
Esperamos nada que não o acerto
Porque nós nunca encontramos palavra
Alguma
Talvez Mercado
Talvez a casa
Que escolhemos com cuidado
Anterior a toda linguagem
E em tudo semelhante a primeira
*
Plano sequência
Você tem muita consciência
do seu corpo e de tudo que ele toca
Eu volto a casa pensando
nas coisas telúricas e em outras formas
de te comer sem que te esgote
Agora no Porto provavelmente
chove e você deve estar pensando
nas partículas do signo acidente
nas escadas e na descida com cuidado
Eles pensam nas suas costas
em outras maneiras de chegar de perto
antes do encontro e o estrago
As equipas de busca se confundem
às equipas de reportagem e nós rimos
do fim disso tudo como fosse um livro
ruim ou um filme narrado em flashes
pense nas 30 linhas daquele poema
pense na bandeira sobre as casas
Eu volto a casa pensando
nas coisas telúricas e em maneiras
de revelar às pessoas que uma cidade
pode causar mais estragos
do que certas guerras mais absurdos
do que pedir um motivo para este facto
As equipas de fuga discordam
com vigor desta palavra exposta
como uma fratura no roteiro
Pois se não fosse colocar tudo
à perda não haveria motivos a sair
da casa criar um melodrama
pense na sequência em neon
pense nos golpes que viemos tomando
E então não pense
Não pense no olho do jaguar que espreita
na rua abaixo com a iluminação saturada
os fatos da dança flamenca
Porque estamos descendo
então não pense nas casas miúdas
que não ouvirão um ruído
sequer do disparo e da sequência
Você tem muita consciência
do seu corpo e de tudo que te toca
embora a mecânica ainda não
acorde o afeto uma espécie de motor
os tempos do tango insistem
*
Primeiro ofício do inquérito Hebdo
Prefiro ler um texto sobre Nietzsche
a ler Nietzsche sobre qualquer coisa
o que não me faz menos nietzschiano, presumo
como não inventam palavras para esse desespero
de não nos caber em nenhuma teoria,
de repente ter olhos inchados & discutir
argumentos para preferir a vida à poesia,
ou a alguns domingos seguidos no Parque do Museu
– o que acontece desde que nos chegaram as notícias
– essas coisas por acaso cruzam o atlântico –
de que agora você e seu amor menor distribuem
panfletos pela cidade luz,
parece que qualquer coisa sobre fotografias, partidos
políticos, jornais de rua –
provavelmente recebem um salário pequeno,
não menos importante do que gasto de transporte
não menos importante do que a história de vida
do motorista que me leva enrugado até o pescoço
– teria as veias mais finas caso fumasse menos
mas por enquanto o que pagamos de cigarros
é muito menor do que se comprássemos os pacotes em Paris
e o que pagam a você e seu amor pequeno juntos
não sustentaria seus vícios
então me sinto muito menos culpado
por pelo menos não ter te ensinado a fumar
como fumam os franceses nos filmes
como você agora percebe que fumam os franceses na vida real
e eu continuo imaginando
os hábitos que não desenvolvemos juntos & as raízes
que fracassaram por serem pequenas,
sua pronúncia perfeita de Gilles Deleuze em algum ponto
me corrige: deveríamos pensar em rizoma –
embora ler Deleuze sobre Nietzsche seja ainda pior
do que ler Nietzsche sobre qualquer coisa,
o que não me faz menos deleuziano como indicava
um desses papeizinhos que você e seu amor pequeno
têm espalhado pela Champs-Élysées nos finais de semana
uma pretensão gasta ao tabagismo –
por enquanto não chego no maço inteiro por dia,
duvido muito de vocês
mas pelo que sei também fazem propaganda de cigarros
e às vezes ficam rindo pelo câncer que me come sozinho
e não preferem nenhuma coisa à outra
é tudo frasco de perfume, de ninguém é a culpa
se agora os homens resolveram contar sua história
pelo menos você e seu amor pequeno – desses que não sabem
o que é fúria, língua ereta correndo seu ouvido –
ainda guardam todo o dinheiro que recebem
para que possam vir ao Brasil
conhecer seus amigos, visitar os sítios que te encantam
talvez me encontrar fumando no canto do parque
pensando que ler o mundo pode ser muito mais fácil
com o zíper cravado na perna.