Quatro poemas de Patrícia Porto
Patrícia Porto é maranhense, professora universitária, formada em Letras, especialista em Alfabetização, Mestre e Doutora em Políticas Públicas e Educação Linguística, organizou o livro Poemas de Portinari (Funarte), publicou a obra acadêmica Narrativas memorialísticas: por uma arte docente na escolarização da literatura (2010) e livros de poesia e contos.
Os quatro poemas abaixo são inéditos.
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a menina que não nasceu
quem socorre tua madeleine
enquanto teus dedos se afogam no chá?
a palavra te faz visita íntima.
pequena e angulada, um dente que dói. tua.
espremida entre as dezenas de caixas tortas das mudanças para o estrangeiro. desconhecida. refugiada.
um exilado só quer viver em paz.
mas tua ainda é a sede, o pranto, o cuspe no prato.
a vontade de acabar em silêncio.
lá, a esquartejada, cuida das próprias dores e sempre sucumbe.
é um animal atarentado. engorda pelas beiradas.
pobrezinho. pobrezinha.
cala esse choro.
engole! é só poesia!
*
nunca fui bendita
onde posso beber dos olhos da santa? Onde encontrar o macio dos braços da infância que não tive?
o martelo atravessou a janela quebrando meus braços. A arte é o movimento esquizoide dos meus abraços para o amor que sempre me rejeita em caleidoscópio.
_mãe, por que as mulheres choram?
atravesso uma sala, duas três. corro contra o meu tempo. não vivi ainda tudo. por favor, não tranquei a porta. mas é tarde demais quando me agarro aos teus cabelos e me escondo.
quando me vejo estou nua de novo entre os convidados do jantar.
pai, que dia morri?
servidos?
um beijo na nuca. um vento que tranca as dores nos olhos que tanto dei.
mais uma fatia?
mordam com vontade.
nunca fui tão bonita assim
como agora entre vossos dentes.
*
luxúria e panic
(para o sr. G)
hoje eu te sonhei em flores
mas não, eu nunca sonho, insoneo
o sr. G nem viu a chamada verde
morreu cedo demais no mundo
e virou espelho fantasma, fractais e fantasia
Crianças festejam estrelas, nuvens, neves,
luzes dos vilarejos que somem e fogos de artifícios em sons atonais
O sr. G. se foi roubando o retrato da persona
viciei o sonho pra lhe rever prever tecer
mas nenhuma escuridão foi tão terrível e bela
a solidão aliviada do silêncio mortal
estagnando a entrada
Zzzzzz dorme o sr. G
E eu que abri os braços para pular e me apaixonei pela cidade de novo
Vai ser ghosting assim na vida de vidraça
que escolheu pra si
Teus olhos no mar de gente ondulam
: são fake tolos
fake love
love fake news o sr. G
*
geleiras
nem todos os dias são de cólera
alguns são de esfumaçada coragem
contra o frio da cólera
o enforcado pode durar
bem mais que supúnhamos
eu, você, toda gente
há notícias que numa vasta manhã
o gelo começou a derreter
num ponto azul da terra
e era um gelo conhecido das guerras
quando terminamos uma dolorosa travessia
ninguém nos abraça ou nos oferece festejo
nossa testemunha solitária
escreve um bilhete, um poema na geleira
e uma onda de alegria
se revela miúda, silenciosa
ainda assim quebra a vidraça, as emergências
atravessa os tímpanos
contrai a carne de dentro até o susto
de permanecer viva
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(Fotografia: Flavio Roitman)