Quatro poemas de Paulo Henriques Britto
Paulo Henriques Britto é poeta, contista, tradutor e professor. Publicou os livros de poemas Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar claro (1997), Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom), Tarde (2007), Formas do nada (2012) e Nenhum Mistério (2018); além do livro de contos Paraísos artificiais (2004). Autor de inumeráveis artigos e livros sobre teoria da tradução, traduziu autores como William Faulkner, Elizabeth Bishop, Byron, John Updike, Thomas Pynchon, Charles Dickens e dezenas de outros. Leciona atualmente na PUC-RJ.
Os poemas abaixo foram selecionados pelo autor.
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V
Dentro da noite que construo aos poucos
para meu próprio uso, tudo é sombra
em que repouse a vista, salvo a lua
eventual, que me ilumine o espaço
que falta eliminar e meça o tempo
em que me esqueço a contemplar o tédio
que descasco e rejeito, em que dispenso
a luz do dia, excesso que não quero
ou não mereço, luxo que desprezo
sem sombra de arrependimento ou luto.
Aqui onde me resto tudo é meu
e mudo, e a noite me cai muito leve
sobre os ombros frios, como um manto, ou como
um outro pano mais definitivo.
[de “Dez sonetos sentimentais” (Liturgia da matéria, 1982)]
*
III
Há algum tempo coleciono cadáveres.
Minhas gavetas não têm mais lugar.
Eu curto o prazer meio besta
dos numismatas e taxidermistas.
Meus mortos gozam a eternidade postiça
dos bálsamos e etiquetas.
E assim convivemos todos
na mais perfeita urbanidade
nesse apartamento igualzinho
a qualquer outro da cidade.
[de “Noites brancas” (Mínima lírica, 1989)]
*
No trivial do sanduíche a morte aguarda.
Na esquiva escuridão da geladeira
dorme a sono solto, imersa em mostarda.
A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
algo cricrila sem parar — insetos?
O abacaxi impera na fruteira,
recende esplêndido, desperdiçando espetos.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.
A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.
[“Véspera” (Macau, 2003)]
*
X
Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas. Cortinas corridas.
Nos armários vazios, grandes chumaços
de algodão a preencher cada centímetro
cúbico de cada compartimento
e gaveta. Na parede, um termômetro
no qual ninguém dá corda há muito tempo.
Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.
É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar
de alguma coisa como um dia. Ou não.
[de “Nenhum mistério” (Nenhum mistério, 2018)]
Maria Luiza Correa
PHB em poemas livres ou meio livres. Gostei!
augusto
são tudo, menos livres