Quatro poemas de Pedro Cassel
Pedro Cassel nasceu em 1989 em Florianópolis. Mora e escreve em Porto Alegre, onde trabalha com música. Tem poemas e traduções publicados na Revista Garupa (2018 e 2020) e A Virada (2020). Em 2020 lançou seu primeiro disco, chamado Abrir. Todos os poemas a seguir são inéditos.
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incêndios
1
não importa que uma xícara e um livro
tenham diferentes respostas à chuva:
as coisas que você salvaria de um incêndio
são as mesmas que salvaria de um tsunami
o perigo não está na água ou no fogo
mas na violência dos acontecimentos
as coisas que você salvaria seriam salvas
não pela dureza e resistência
do material que as constitui
mas pela sua teimosia
em mantê-las por perto
2
quando pessoas ou a natureza
acabam com uma floresta
as aves fogem deixando
os ninhos com ovo e tudo
dizer que elas o fazem
sem sombra de tristeza
seria uma suposição arrogante
seria tirar lições de uma forma
de vida que não consegue
resolver problemas lógicos
da primeira dificuldade
elas vão embora e tudo
o que podemos concluir
é que preferem perder uma casa
à possibilidade de fazer outra
3
talvez ao toque do alarme
você só lembre de levar consigo
coisas que poderia repor
sem nenhuma dificuldade
como o carregador do notebook
quem sabe ao ver a barbatana
do tubarão você passe a confiar
sua vida ao instrutor de mergulho
que minutos antes
lhe parecia um idiota
vai que ao ver uma avalanche
descer na direção do restaurante
você não corre sozinho pra porta
deixando seus filhos à sorte
com uma porção de parmegiana
sabe lá se numa dessa
enquanto os vizinhos aos gritos
carregam quinquilharias
você não senta na janela
pra ver o bairro acabar
4
eu salvaria você de um incêndio
com minha saliva eu salvaria você
de um incêndio com minhas lágrimas
eu salvaria você de um incêndio mijando
nas tábuas eu salvaria você de um
incêndio porque seu corpo quente
não percebe a ameaça do calor
como quem salva de um incêndio
uma lata de panetone cheia de dinheiro
sem se importar se ela está fervendo
eu salvaria você e ainda que seja você
o motivo de cada incêndio desse poema
eu salvaria você de todos eles
5
e depois na cinza perceber
que de tudo sobra uma lembrança
ainda que num rastro de sujeira
que a diferença é uma estrutura precária
que big bang é um barulho de começo
que cartórios não abrem aos domingos
e depois na casa de parentes
ou namorados ou amigos próximos
passar a noite na internet
vendo preço de sofá
*
festa
pity party
com debbie downer
só eu e ela
anfitrião e convidada
eu fiz empadinhas
ela traz refri
entornamos um capeta
de leite moça vencido
jogamos tiro ao alvo
com meus retratos de infância
arrebentamos na pancada
uma piñata de óculos
debbie fez a playlist
só tem bate estaca
“nos anos 90 a gente
era feliz e não sabia”
logo fica meio chato
não temos muito assunto
ela se pergunta por que veio
eu por que convidei
acabo a noite
ouvindo deitado
aquele poperô
no chão do quarto
*
helena e norma
minha vó conta que minha mãe
não queria porque não queria
se aproximar do centro espírita
estava tomada por coisa ruim
queria proteger a própria tristeza
a tristeza da minha mãe
a protegia de outras coisas
ela desmaiou na esquina
pra não ter que chegar acordada
a esse lugar onde a tristeza
seria tratada como um problema
meu pai fez cirurgia espiritual
venceu um câncer com ajuda
de índios invisíveis
minha outra vó ficou de fora
vendo a tribo passar
eles nunca mais foram os mesmos
meu pai e minha mãe
parece que ficaram mais doces
ninguém me ensinou a rezar
mas carrego essas histórias
como um terço
*
caio quer trepar na rua
ele abaixa a calça e abrindo a bunda
com as mãos comprova que a noite
não cabe num quarto, que a ética
é um problema hétero, que a glória
vem dos buracos onde não entra luz
que política é uma palavra de
poucas rimas, que é nas partes
do corpo que o sol desconhece que
aparecem as piores queimaduras
que é por trás que os milagres
chegam, que é rápido que
acontecem, que segredos
tem valor como arma branca
que o frio é psicológico, que a
audição dos vigias é fraca, que
a liberdade começa num convite
e morre quando o sono bate
ou um carro acende os faróis