Quatro poemas de Raquel Gaio
Raquel Gaio é autora dos livros manchar a memória do fogo (Ed. Urutau, 2019) e das chagas que você não pode deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (Ed. Patuá, 2018). É poeta e artista visual. https://raquelgaio.tumblr.com/
Os poemas a seguir são do livro manchar a memória do fogo (Ed. Urutau, 2019).
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0/I
nasci batizada por uma queda
deus impregnou-me de um país estrangeiro
úmido, curvado
uma terra extraviada no poente
vivo provavelmente nas costas
de algum sussurro, de algum pavor
sou uma acumulada
um crepúsculo tardio no teu hemisfério
tenho a planície assoreada no punho
e tua mão quase estendida sobre ela
em seu centro, o medo da violação
nenhum anjo, discípulo ou boca de mãe
nos interditariam mais que nós mesmos
somos um calabouço que devora a própria face
que faz essa água benta
a não ser nos atrasar impunemente
sem deflorarmos o próprio mistério que somos?
—
trago um hemisfério
que fenece sob a língua
derivas imaculadas, orações órfãs de templos
— uma mandíbula que confunde os idiomas —
nada acontece dentro do osso
ele parece ser o único que se salva
nasceu dotado de renúncias
estou perdendo a umidade através dos anos
estou ficando intocada
estou me tornando uma impronunciável.
—
tenho nos cabelos uma bondade
que me humilha
atravesso toda espera como uma débil
talvez como uma inominável
abro a palavra segredo e me firo
como uma cura
uma reza suspensa que habita todo gesto
sei que também sou o tendão desgastado em seu leito
o buquê de flores que cresce na sua boca entreaberta.
—
eu falo pro pé mutilado de meu pai
pra perna em falta de minha vó
pros olhos antigos que não conheci
— pra água pousada na minha espécie
como desabituar o olho da mãe?
como inaugurá-lo para a grande avalanche?
haverá na largura do nascer
um momento de dessangramento?
inevitável é a bruta queda, a face rígida de deus
a sombra que anda no dentro
a expedição predatória de toda genealogia.