Quatro poemas de Sarah Howe traduzidos do inglês por Eduardo Ferraz Felippe e Thiago Ponce de Moraes
Sarah Howe (1983–) é uma poeta, editora e pesquisadora sino-britânica nascida em Hong Kong. Sua primeira publicação, a plaquete A Certain Chinese Encyclopedia, veio a público em 2009 e lhe rendeu o Eric Gregor Trust Award para poetas com menos de 30 anos. Seu primeiro livro de poemas, Loop of Jade (2015), venceu, entre outros prêmios, o prestigiado T.S. Eliot Prize daquele ano. Foi a primeira vez que um livro de estreia recebeu essa distinção. A presente seleção traz poemas deste livro e também um poema dedicado a Stephen Hawking ainda não compilado.
Eduardo Ferraz Felippe é professor do Departamento de História da UERJ. Estuda as relações entre Literatura e História e publica lidando com esses campos. Traduziu ensaios para revistas acadêmicas. Organizou livro sobre literatura Latino-americana girando ao redor da obra de Ricardo Piglia com o título: Só se perde o que realmente nunca se teve (2019, Metanóia). E-mail de contato: ffeduerj@gmail.com
Thiago Ponce de Moraes (1986–) é poeta, tradutor e professor, autor de, entre outros, Dobres sobre a luz (2016, Lumme Editor, finalista do prêmio Jabuti) e Glory Box (2016, Carnaval Press, coletânea bilíngue traduzida pelo poeta britânico Rob Packer). Seu novo livro de poemas, Espacelamentos, será lançado pela Gralha Edições esse ano e trará desenhos de Priscilla Menezes. E-mail de contato: poncedemoraes@gmail.com
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Relatividade
Para Stephen Hawking
Quando acordamos tomados pelo pânico no escuro
nossas pupilas tateiam buscando a forma das coisas que conhecemos.
Fótons desprendidos das frestas como galgos na pista
revelam a duplicidade da luz em suas sombras projetadas
que riscam um muro do laboratório escurecido – basta de partículas –
e com um aceno dão adeus a todas as certezas.
O que é certo em um universo que se
esvai como o canto da sereia à meia noite? Dizem
um flash visto de dentro e de fora de um trem desgovernado
explicará por que o tempo se dilata como uma tarde
perfeita; adivinha buracos negros onde linhas paralelas
se encontrarão, cujo horizonte despido mesmo a luz das estrelas,
curvada em seus rastros, não é capaz de resistir. Se chegamos
tão longe, não poderiam nossos olhos se ajustar ao escuro?
/
Relativity
for Stephen Hawking
When we wake up brushed by panic in the dark
our pupils grope for the shape of things we know.
Photons loosed from slits like greyhounds at the track
reveal light’s doubleness in their cast shadows
that stripe a dimmed lab’s wall—particles no more—
and with a wave bid all certainties goodbye.
For what’s sure in a universe that dopplers
away like a siren’s midnight cry? They say
a flash seen from on and off a hurtling train
will explain why time dilates like a perfect
afternoon; predicts black holes where parallel lines
will meet, whose stark horizon even starlight,
bent in its tracks, can’t resist. If we can think
this far, might not our eyes adjust to the dark?
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A caixa de joias da mãe
as pálpebras gêmeas
da caixa de laca preta
se abrem –
um lago iluminado pela lua
folhas de lótus diáfanas
se desprendem em camadas
correntes de prata
o’s e a’s caligrafados
em placa de cobre
cordões emaranhados
de contas achatadas
sementes de tremoço
cornalinas
suas conformações manchadas
olhos de mutucas
seu anel âmbar –
meus dedos medem
seu peso –
colher de chá de mel
whisky derramado
pela luz da manhã
/
Mother’s jewellery box
the twin lids
of the black lacquer box
open away –
a moonlit lake
ghostly lotus leaves
unfurl in tiers
silver chains
careful o’s and a’s
in copperplate
twisted strings
of flattened beads
lupin seeds
carnelians
their tarnished settings
horseflies’ eyes
her amber ring –
my fingers gauge
its weight –
teaspoon of honey
whisky poured
by morning light
***
Com o tempo comece
se eles vão um dia retornar para nós
é algo difícil e indeterminado
se a mente amassada em sua agonia
consegue destrinchar as trilhas do periquito
se entre o pó e o rosto descascado
alguma coisa de fato importa
se a dúvida do tolo é preferível
ao torpor do torpe
se minhas pérolas vivem com a astúcia de Orlando
no ferro-velho frio da lua
se a órbita perturbada do culpado
engrossa o asfalto dos estacionamentos
se o Senhor é meu celacanto
quem não chorará
se o solecismo de carne podre
é o mais estranho dos peixes
se minhas pérolas presas em sua consolação
cavalgaram o triste carrossel da morte
se os perdidos vão voltar para nós
em uma agonia de periquitos
se o cortejo de caranguejo e o florão de carvalho falso
vão invadir a canção descascada
/
Start with weather
whether they will ever return to us
is a hard and indeterminate thing
whether the scrunched-up mind in its agony
can parse the parakeet’s tracks
whether between the powder and the peeling face
anything actually matters
whether the dope’s doubt is preferable
to the toper’s torpor
whether my pearls live with Orlando’s wits
in the moon’s cold scrapyard
whether guilt’s deranged orbit
jellies the tar of parking lots
whether the Lord is my coelacanth
who shall not weep
whether the foul-fleshed solecism
is the queerest of fish
whether my breached pearls in their solace
rode death’s sad carousel
whether the lost will come back to us
in an agony of parakeets
whether the courtship of crab and faux-oak finial
will break into peeling song
***
Travessia de Cantão
Algo nos leva a procurar um lugar.
Por vários minutos a cada dia nos perdemos
para outro lugar. Mesmo sem
saber, estamos entre os lençóis aconchegantes
de uma cama da infância, ou cruzando
aquela represa luminosa cercada por salgueiros ao entardecer.
Diga-me, por que vim? Peguei
o primeiro ônibus da manhã em frente
ao grande hotel da cidade. Arrastei minha mala
pelas ruas silenciosas, ainda escuras, do quarteirão
inglês, as fachadas de alvenaria funerárias
com um ar de Whitehall, ou do Cenotáfio,
mas plantadas do outro lado da terra. Aqui,
nenhum sinal de vida, exceto pelos ambulantes, solícitos,
arrumando seus caixotes, pilhas de panelas
de bambu, woks amassados, para algum plano
íntimo familiar. Vejo o sol nascer
através dos tupperwares coloridos. Tento dormir
mas meus olhos se prendem a cada árvore tubular, esvoaçante,
suas folhas feito facas. Placas de metal azuis
à beira da estrada, suas letras brancas intrincadas
como broches, a que ninguém desobedece.
Procuro um rosto familiar. Existe
algum símbolo que estou buscando. Ontem
me sentei num café enquanto chovia, gotas
como coágulos quentes colidindo com o telhado
de acrílico. Para as melodias açucaradas de Frank
Sinatra, inesperadamente estranhas, eu tocava
a orquídea solitária, brilhante – não saberia dizer
se era real. Escolhi em meio a brotos
de bambu anêmicos, raízes de lótus como
o bico de plástico de um regador,
com muito tempero, não como você faria em casa.
Descartei a mudança em cantonês.
Yut, ye, sam, sei. Como um bebê. Os números
são os restos que permanecem comigo. Ouço
outra vez a sua voz, primeiro firme, depois quase
lamentosa, me pedindo para não partir.
Tento te imaginar como uma menina –
uma rua de edifícios de gesso de quatro andares,
portas de madeira talhada, envelhecidas, quase santuários
(como naqueles cartões-postais da velha Hong Kong que você amava) –
você, uma criança na cama, os vizinhos sempre entrando
e saindo, um cão terrier, tigelas de arroz
pela metade, as peças de marfim do Mahjong
estalando, como articulações, ágeis e mecânicas,
gritos estridentes – ay-yah! fah! – noite adentro.
Meu coração está envolto por uma concha de ostra –
essa estranha peregrinação para casa.
*
O ônibus afunda
com um suspiro hidráulico. Então, atravessamos
a linha imaginária. A aduana
é uma piscina de concreto. O oficial de uniforme
verde-líquen, com seu vistoso chapéu de abas pretas,
suas mãos elegantes em luvas brancas, sua arma
embainhada, lentamente sobe os degraus emborrachados,
move com cuidado os cotovelos pelo corredor. Ergo
o passaporte todo amassado, o ouro
gasto do símbolo do leão – uma oferta silenciosa.
Dois dedos escoram a espinha maleável, o polegar
nas bordas – um ângulo exato como o pulso de um
violinista – passando por carimbos até parar no último
espaço laminado. Ele levanta seus olhos para ler
o meu rosto. Eles cintilam sua incerteza
enquanto distingue olhos, o contorno do nariz:
meio-identificação. Esses momentos simples –
algo como encontrar a família.
A garçonete tranquila em Beijing. Sua mãe…
China… trabalhadora? ela pergunta, por fim, após
muitos sussurros saindo da cozinha.
Ou a velha mulher no ônibus de Datong,
sem dúvidas apenas convidando um estrangeiro para jantar,
mas que poderia ter sido a minha avó
desconhecida, por tudo o que eu sabia e entendia.
Ela deu uma olhada em mim e se aproximou
para segurar os meus ombros, disparando uma sequência
de sílabas frenéticas, felizes, em um
dialeto que nem conheço. Ela segurou minhas
mãos desajeitadas, colocou em concha sobre as suas palmas
de barro, até que a inquietação geral mostrou
que estávamos próximas à parada. Quando as portas enfim se abriram,
ela sorriu, pressionou um pedaço de papel dobrado,
caneta bic, garranchos, entre meus dedos,
e então se juntou à procissão desaparecendo. Alguns,
percebi depois, usavam capacetes, conforme
sumiam pela planície vazia, sob a sombra
das altas torres escurecidas da mina.
*
Algo nos leva a procurar um lugar.
Histórias antigas contam que se ao menos
pudéssemos chegar lá, todas as distâncias seriam apagadas.
As rodas atritam contra o chão
e seguimos o nosso caminho. Logo chegaremos
à cidade perfumada. A ilha surgindo
em meio à névoa, onde torres de prata encobrem
a montanha invisível, através da pequena
extensão do mar azul-celeste. Eu fiz
a travessia. A mesma jornada que você, um bebê
chorão, fez, uma nota estridente em meio ao cinza,
formas amontoadas, em algum momento em mil novecentos e quarenta
e nove (ou ano um do jovem Estado
Popular). E o que mudou? O ônibus
quase vazio diz basta. E então, conforme nos aproximamos,
parada-chegada, por terra, aquela cena outrora familiar –
a maré do Sul da China, morna, verde-alga –
posso discernir os pontinhos de mercúrio
emergindo, distintos contra o azul
como as penas estendidas na ponta
da asa esticada de um pássaro. Muito mais
altos agora do que quando parti
há quinze anos. Subitamente, eu sei –
pelos apartamentos medianos onde cresci,
instalados em bosques de bambu – pelas janelas
revestidas de cunquates no vigésimo quinto andar,
tingidas para suportar o brilho da condensação –
você não aguenta mais ver os carros minúsculos
circulando por aquelas avenidas cercadas de selva.
A balsa baixa, branca sobre o verde,
pilotando o tapete de estrelas do porto,
tornada para sempre casa, que não consegue mais ver.
/
Crossing from Guangdong
Something sets us looking for a place.
For many minutes every day we lose
ourselves to somewhere else. Even without
knowing, we are between the enveloping sheets
of a childhood bed, or crossing
that bright, willow-bounded weir at dusk.
Tell me, why have I come? I caught
the first coach of the morning outside
the grand hotel in town. Wheeled my case
through the silent, still-dark streets of the English
quarter, the funereal stonework facades
with the air of Whitehall, or the Cenotaph,
but planted on earth’s other side. Here
no sign of life, save for street hawkers, solicitous,
arranging their slatted crates, stacks of bamboo
steamers, battered woks, to some familiar
inward plan. I watch the sun come up
through tinted plexiglas. I try to sleep
but my eyes snag on every flitting, tubular tree,
their sword-like leaves. Blue metal placards
at the roadside, their intricate brooch-like
signs in white, which no one disobeys.
I am looking for a familiar face. There is
some symbol I am striving for. Yesterday
I sat in a cafe while it poured, drops
like warm clots colliding with the perspex
gunnel roof. To the humid strains of Frank
Sinatra, unexpectedly strange, I fingered
the single, glossy orchid – couldn’t decide
if it was real. I picked at anaemic
bamboo shoots, lotus root like
the plastic nozzle of a watering can,
over-sauced – not like you would make at home.
I counted out the change in Cantonese.
Yut, ye, sam, sei. Like a baby. The numbers
are the scraps that stay with me. I hear
again your voice, firm at first, then almost
querulous, asking me not to go.
I try to imagine you as a girl –
a street of four-storey plaster buildings,
carved wooden doors, weathered, almost shrines
(like in those postcards of old Hong Kong you loved) –
you, a child in bed, the neighbours always in
and out, a terrier dog, half-finished bowls
of rice, the ivory Mah Jong tablets
clacking, like joints, swift and mechanical,
shrill cries – ay-yah! fah! – late into the night.
My heart is bounded by a scallop shell –
this strange pilgrimage to home.
*
The bus sinks
with a hydraulic sigh. So, we have crossed
the imaginary line. The checkpoint
is a concrete pool. The lichen-green uniformed
official, with his hat brimmed in black gloss,
his elegant white-gloved hands, his holstered
gun, slowly mounts the rubber steps,
sways with careful elbows down the aisle. I lift
this crease-marred passport, the rubbed
gold of the lion crest – a mute offering.
Two fingers brace the pliant spine, the thumb
at the edge – an angle exact as a violinist’s
wrist – fanning through stamps to halt at the last
laminated side. He lifts his eyes to read
my face. They flicker his uncertainty
as he makes out eyes, the contour of a nose:
half-recognition. These bare moments –
something like finding family.
The mild waitress in Beijing. Your mother…
China… worker? she asked, at last, after
many whispers spilling from the kitchen.
Or the old woman on the Datong bus,
doubtless just inviting a foreigner to dinner,
but who could have been my unknown
grandmother, for all I knew or understood.
She took a look at me and reached up
to grasp my shoulders, loosing a string
of frantic, happy syllables, in what
dialect I don’t even know. She held my
awkward hands, cupped in her earthenware
palms, until the general restlessness showed
we neared the stop. As the doors lurched open,
she smiled, pressed a folded piece of paper,
blue biro, spidery signs, between my fingers,
then joined in the procession shuffling off. Some,
I realised then, were in hard hats, as they
dwindled across the empty plain, shadowed
by the blackened, soaring towers of the mine.
*
Something sets us looking for a place.
Old stories tell that if we could only
get there, all distances would be erased.
Wheels brace themselves against the ground
and we are on our way. Soon we will reach
the fragrant city. The island rising
into mist, where silver towers forest
the invisible mountain, across that small
span of cerulean sea. I have made
the crossing. The journey you, a screaming
baby, made, a piercing note among grey,
huddled shapes, some time in nineteen-forty-
nine (or year one of the fledgling People’s
State). And what has changed? The near-empty
bus says enough. And so, as we approach,
stop-start, by land, that once familiar scene –
the warm, phthalo-green, South China tide –
I can make out rising mercury
pin-tips, distinct against the blue
as the outspread primaries at the edge
of a bird’s extending wing. So much
taller now than when I left
fifteen years ago. Suddenly, I know –
from the Mid-Levels flat where I grew up,
set in the bamboo grove – from the kumquat-
lined windows on the twenty-fifth floor,
tinted to bear the condescension’s glare –
you can no longer see the insect cars
circling down those jungle-bordered boulevards.
The low-slung ferry, white above green,
piloting the harbour’s carpet of stars,
turned always home, you can no longer see.
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Eduardo Ferraz Felippe:
Thiago Ponce de Moraes: