Quatro poemas de Talita Gonçalves
Talita Gonçalves é doutoranda no programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP e pesquisa literaturas de autoria lésbica. Trabalhadora da palavra, escreve e edita. Escreveu o posfácio do livro Perante a Lei, de Franz Kafka, primeira publicação da Textura editorial. Tem poemas publicados nas revistas Garupa e Desvario, além de textos sobre educação e literatura na revista Conhecimento Prático: Língua Portuguesa e Literatura.
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Na palma da mão havia um olho sangrando
e era meu
quando o corpo era mar violento
e calava em ondas de silêncio turvo
o espaço entre as amígdalas
alí
um
grão
de
areia
pousou
em meus olhos
*
p r e s s á g i o
os olhos vermelhos, sanguíneos de tempestade
cobertos em pedra fina
milhares delas
todo
movimento
me
custava
palavra turva
curva solitária do bule
manchando a toalha
de qualquer
cor
invisível
eu estou só
com a minha memória
*
notícia
ao chegarem os homens brancos, rosados
cheirando a cachorro molhado
e merda
e perfume
as mulheres daquela terra intuíram
arquitetar proteção
mandaram seus pares a distrair os navegantes
trataram de catar maniva brava e tinhorão
tecnologia
trincheira
medicinal
e alimentaram a tripulação
morreram, alguns, poucos gajos
outros tantos
de vergonha
silenciaram, pois, o acontecido
preservando covardias
só mesmo as vergonhas inexistentes
daquelas mulheres
viraram poemas
em livros didáticos
*
Ocupar a casa
Eu mais minhas irmãs
varrer os pelos, cabelos
todo rastro meticulosamente criado
pela sua presença
ensacar sua vida como lixo
os detalhes
baratos, expostos na rua
acalmar os choros com chá de açucena
proteger a minha mais velha
dar o banho
tomar os cabelos em sabão de coco
perfumá-la em baunilha como antes gostou de cheirar
recriar a memória
aguardar sua chegada
lâminas caras à mão
investimos
taquaras do varal de minha mãe
emprestamos
olhos de fogo
delicadeza, maestrina
você definhando, sujando calçada
pra gente rir
comer contente o mingau
amarelo
em sal, alicerce
vestir o branco, anil azulinho
cantar
amanhecer em cantoria de corrupião livre.