Quatro poemas de Telma Scherer
Telma Scherer é artista e professora de literatura brasileira na UFSC. Publicou os livros de poesia Desconjunto (IEL, 2002), Rumor da casa (7 Letras, 2008), Depois da água (Nave, 2014) e Entre o vento e o peso da página (Medusa, 2018), além da narrativa Lugares ogros (Caiaponte, 2019). Tem trabalhos na área das artes visuais e da performance.
Os poemas abaixo são inéditos.
***
bem viada, viajo
por entre entranhas
de um chacra esplênico. bebo
em goles cor de laranja
esse licor estranho. estou
entre a tempestade e a turba –
vândala, vagabunda,
virada do avesso
pelas cores do casaco
onde um boton
tenta me dizer do spleen
que não quer charutos.
toda fora, verto a vida
por entre as
conchas curiosas da praia,
lá de cima
da pedra
sou promessa de festas
e de círculos xamânicos. mas
não tem mais vintém
meu vaivém viado
nessa viagem
de vícios coloridos, doloridos,
os quais
não consigo doar
pelas palavras virgens
que sentam na pedra fria
e não se enganam. bebo
o sol daqui desse cimo
quente,
e fervendo
me dou ao laranja
de um céu de ondas, bem vulgar,
viada
e vagamente prometida
ao próximo adolescente.
*
Venha para a livre negociação, você traz uns amarelos e nós preenchemos o resto com o som do martelo e das risadas. Os pedreiros já estão preparados e pode ficar tranquilo que essa privacidade que você perdeu, não vai nem precisar. O que faria você em horas vagas, se há viagens de negócios, para os bons, e uns ócios a mais para miscigenar com a nossa produtividade? Venha para a livre negociação, liberdade é coisa da idade errada, agora você já pode assumir um caminhão de compromissos e carregar o piano, se quiser. Vem, vem, com direito a bala perdida e a mais uma roleta ali em frente. Respeite a faixa amarela, nós respeitamos você.
*
Lamber
a superfície das coisas –
entrar em comunhão
com a textura do dia.
Ver grandes no pequeno
de um pote sujo, um pincel
que ficou duro
de mal lavado.
Lavar com a língua
cada superfície:
desenhar nas telas
esse eterno improviso
sem acabamento:
esse ser sem ensaio e sem
qualquer consolo.
Encarar com frieza
a necessidade
de círculos
para que algo possa
ser pensado.
Traçar linhas
tortas sobre o plano
pensando nos ossos
que sustentam o corpo
e ser rígido, rígido, rígido,
até não querer mais
nenhum alicerce.
E somar aqui e ali
obscuridades, pontos de luz –
coisinhas à toa
como uma casinha de criança
inútil,
como um caramujo
que cresceu e ninguém viu,
como uma calcinha
gasta
que é preciso descartar e
comprar novas
na promoção.
Tocar a pele puída
das calcinhas
velhas,
carcomida e
transparente, aquarela –
senti-la viva
dentro do lixo,
como as borbulhas do molho
suando na panela.
Comer
as partes mornas
das superfícies da vida,
torná-las entranhadas
e fazer com elas
uma comunhão,
gozo,
cornucópia.
*
Todos sabem que Deus
tinha mais o que fazer
e, mesmo assim,
criou o oilbar da Winston
série 1, série 2, série 3,
até série 5, para aqueles
que não beijam bocas.
Deus criou a guache Talens
e o grafite aquarelável
para aqueles
que preferem água.
Sem descuidar um segundo
da nossa satisfação, Deus criou
o papel trezentas gramas,
cem por cento algodão, criou
as espátulas e os pincéis
os joelhos e os anéis
e os dedos todos,
os cabos e os quartetos, os toques
de pelo de marta, de orelha de boi,
tão flexíveis.
Deus criou os papéis especiais
como o Canson Héritage
e o Moulin du Roy
aos quais
poucos têm acesso.
É pena.
Mas Deus fez. Deus faz.
Não rouba, e ainda faz.
Faz sexo de madrugada
quando os outros estão dormindo.
Faz manchas cortadas
por uma linha sinuosa
no meio do contrapelo.
Deus nos dá energia
para usar o mdf
o estilete de precisão, o sargento,
as acrílicas de parede
e os espólios das calçadas.
Deus pega um ou dois trens
para a perifa
onde não há gratidão
(gratiluz é o kralho)
e lá faz com maestria
o seu próprio atelier.
Ali
cronópios passeiam
em pipocas e piquetes,
aquarelas, muros, saraus.
Quem não sabe o valor
de um cinza e um sindicato
não sabe apreciar Deus.
Deus vem de boné
(às vezes de corrente)
e bagunça tudo. Deus aposta
na complementaridade.
Luzes e sombras é com Ele.
Onde havia lixo seco, Deus pôs
as suas colagens e agora
passa tudo nessa prensa.
Deus tinha
mais o que fazer
bem mais o que fazer
do que ouvir reclamação
de que o tempo não tá bom
para alizarin crimson. Deus criou
o pastel oleoso, o pastel seco,
o muro, o rato, o canudo
e as suásticas
para você escolher o que
quer pintar no seu livre-ar
bítrio. Deus fez você
por merecer
e mesmo com a língua seca
e mesmo sem cotonetes
Deus pinta, pinta a toda a hora.
*
Deus é vermelho, alizarin, magenta,
Deus é vermelho da China, vermelhão,
escarlate, Deus é vermelho tomate, carmim,
e verde vessie. Deus é verde, sim, apesar de que
geralmente não se vê que
economizar azul cobalto, calibrar o amarelo de cádmio
volta e meia
conduz a dragões.
Você não vê Deus na borracha Staedler
e precisa matar o dragão
enterrá-lo em terra verte, terra de siena, um amarelo de nápoles
entretecido de laranjas para melhor acordar a fúria-fogo.
Deus podia estar caçando bandidos,
atirando para todos os lados, deus podia fazer guerra e,
no entanto,
Deus criou o oilbar, o diluente Eco
e os pincéis da linha vermelha,
Tigre e Condor, vejam,
deus não precisava prestar atenção em nós,
mas ele fez os pelos sintéticos, tão bons,
quase um pelo de marta,
um orelha de boi, orelha de van gogh
sem precisar matar
nem uma marta, ou coelho.
É por isso que eu digo
Que deus beija de língua
enquanto
a gente está pintando.