Quatro poemas de Yuri Amaury
Yuri Amaury nasceu em 1991 em Curitiba. É licenciado em Letras Português-Inglês pela UTFPR, mestre e doutorando em Estudos Literários pela/na UFPR. Seu livro de estreia na poesia, Agáloco|Transviscerações, saiu em 2020 pela editora Urutau. Recebeu segundo lugar no Prêmio Off-Flip de Literatura 2020 na categoria Poesia. Sua poesia já apareceu nas revistas Posfácio e Literatura e Fechadura. Como tradutor, dedica-se à poesia estadunidense ligada ao pensamento ecológico. Suas traduções para poemas de Mary Oliver, Wendell Berry, Hayden Carruth e John Kinsella já apareceram no blog Escamandro, na Revista Belas Infiéis e na Revista Zunái. Traduziu os livros de poesia The Rain in the Trees, de W. S. Merwin, (no prelo, Editora UFPR) e The Peace of Wild Things, de Wendell Berry (inédito).
***
i.
Agora – o traço
de espinho em pele,
voluta vermelha
líquida cobrindo o corpo.
Escorre a cor, confusa
de pétalas junto ao osso
agora – afundam,
finas,
como um gume de unhas,
nas teias e tramas noturnas,
as marcas – as muitas – cruzadas
mandalas abertas do toque
morno de ontem, e lá, bem
abaixo da epiderme,
tenaz que chegas
e pousas.
*
Solstício
O teu toque que é
gelo na minha boca
e nas paredes que são
nácar dos pulmões passa
as farpas do teu hálito pelos
meus lábios e na queda longa
da garganta até haver em víscera
a aspereza mais primitiva do ar dos
invernos, o lar das ossadas que ficam
do orgânico nas desolações – tempo e
paisagem entranhada. O encontro do teu
corpo no meu, fumaça que sobe na manhã
com as exalações, é trespassarem o ser em sua
carne com a matéria bruta da história; tatear o que
há na espessura de um dia enterrado perto da raiz dos
dias.
Por dentro do frio da trama que envolve toda percepção,
as afinidades ancestrais no timbre manando das vibrações num
fio afastado: harmônico anacrônico. Pulsação de passos que acordam
na textura as ressonâncias dum lugar onde andaram as feras e
coisas primordiais.
Você é a região no tempo e no espaço
que concentra toda substância, faz em cada ser o seu
adensamento e abrir os olhos empoeirados da
memória; as ulcerações atestam em toda
coisa tua passagem: calor que some
saindo entre dentes, sangue que
há murmúrios em latejar
nas têmporas, a face
negra da máscara
se aproximando,
árvores que vão
fechando as
pálpebras –
marfim que cai
em gotas, pérola
e algas –
a luz sumindo.
*
Os espinheiros
Os acordes
pulsando as
fibras e o grão
da madeira –
ondulação da
matéria e do
espaço, textura
transmitida no
imediato do
tempo e sua
profundidade,
transmutação
de moção e
corpo em corpo
movente.
Quem és – e
quem responde
é nada e quem
serás ao fim
duma outra
expiração;
as
dissonâncias
se erguem no ar
no centro de um
casulo composto
dos sentidos e do
que o vento faz
na rocha, na pele
da água e do solo,
nas barreiras
erguidas nas
colunas das
árvores, e na
formação de
outro organismo
em vibrarem as
folhas.
O que se vê à
tona no olho e
cristalino que
emerge do fundo
do instante, o
único que há,
é só o que há
muito e desde
sempre ali já
aguardava, em
igual semblante
até o encontro.
E os tambores
tateando um
silêncio que
potencial se
instala no som.
Acorda a beleza
de enterrar os que
morrem, e o que a
carne deixa à carne,
memória que cinge
a espécie. E o que
fica às flores e aos
cães.
*
A morte do mundo
Dos estilhaços que se espalham,
todos, assimétricos, da argila
escura sobre o solo, e rasgam
até a morte, grande, as feridas
da fria terra, sou eu, aquele.
Caco
partido da urna donde escapa,
grão por grão, e cai e se perde,
pelo chão, a cinza da vida.
Mosaico monocromático
da morte do mundo, nós
– farpas entrando, fundo
e mais fundo pra dentro
do barro do ventre macio
e úmido onde a seca
dureza do jarro se extrai
incontestável.
Da matéria
incandescente do manto, do
ponto máximo de fusão, até
a crosta da crosta
– o avesso
do organismo –, como o
corpo do mundo molda
o ínfimo duma gota no
endurecimento e exsuda
o que escava e fura, cego,
a carne que o gerou.
Diz a lenda Cherokee
que da abóbada celeste
teto duro de cristal, quatro
cordas de couro de búfalo
pendem, às quatro sagradas
direções, e delas, tocando as
águas onde flutua, a Terra.
Quando arrebentam – porque
arrebentarão –, a Terra tombará
e tudo que vive com ela, e morrerá.
E a água cobrirá tudo silenciosamente.
E será como se a Terra nunca tivesse existido.
Cacos. Escapando ao jarro
pra afundar através dos
sedimentos das eras dum
tempo que não é nosso,
deixando ao céu as cinzas
pra adentrar o frio da pele
fina, esperamos
o som da luz
em apagar, que avise da
treva nossos olhos, nossos
corpos, pra conhecê-la.
Ele nunca chega.