Quatro poemas e dois contos de Ronaldo Cagiano
Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e atualmente reside em Lisboa. Autor, dentre outros, de “Eles não moram mais aqui” (Contos, Prêmio Jabuti 2016) e “Observatório do caos” (Poemas, Ed. Patuá, 2016).
***
Conversa com Murilo Mendes, depois de ler Evandro Affonso Ferreira ao som de Billie Holiday
trouxe tanta coisa para o poema
que acabei por me confundir:
fiquei desconfortavelmente sentado
logo após o ponto final
Rui Tinoco
A poesia está em pânico, Murilo,
diante desse mundo
e seu quartel de demônios.
Penso em Almodóvar
enquanto minhas mãos fatigadas
enchem uma bacia de estercos
para adubar novas dúvidas.
Penso em Kiarostami
enquanto Deus não se envergonha
de suas núpcias com o silêncio:
não sabe o nome das coisas
não sabe o peso da vida
não socorre a mulher que será apedrejada em Teerã
negligente com o festim das guilhotinas
surdo à algazarra dos bárbaros
cego diante dos coturnos de 64
ouvidos moucos aos dissidentes de Kadafi
impassível à germinação da morte
e não percebe que,
nessa cordilheira de livros
há mais vida que nas igrejas
—————–nos palácios
—————–na justiça
que em cada canto do planeta
explodem cogumelos de ofensas
E eu penso em Ginsberg,
enquanto me sinto nômade
nesse mar absoluto
de tristezas renovadas
e uivo nas esquinas do inferno
comendo das pastagens fúnebres
enquanto na noite ocidental
um silencioso vírus
desintegra a ética
e blasfema contra
toda existência
Sim, Murilo,
estamos vestidos de alfabetos
mas não descobrimos nossas culpas
não conseguimos nomear nossos delitos
a vida passa por nós,
como o rio Paraibuna que
atravessa Juiz de Fora
sem olhar para os lados
Indiferentes como ele,
entramos e saímos
como água esquiva
serpenteando entre ruínas
ziguezague líquido tentando renunciar
———————-ao esquecimento.
Quantos cultivam lírios
em autárquicos vasos de plástico
eles não sabem que a política
ou é paralítica
ou é criminosa
O amor
repatriado tantas vezes
não nos salvou dos esgotos
———nem cauterizou nossos desgostos.
O dia começa a clarear
abraço de novo o calendário
e não sei que dia é hoje,
mas
enquanto escrevo poemas no vazio
o pensamento,
animal estropiado e sem rumo,
leva-me até Win Wenders
ou me mostra
os relógios derretidos de Dali
E o vento
que em algum lugar
(será em Damsaco? será na Faixa de Gaza?)
tateia os morros
e segue seu curso penteando os arrozais,
ensina que há de ter nome
a bile incontida dos meus atos
Contemplo a cidade (uma estufa, uma salmoura):
e sua falta de rumo nas coisas
observo os homens:
estão sisudos, inertes, detidos, incomunicáveis
picados pela mosca da indiferença
Olho dentro dos ônibus, táxis, automóveis, metrô:
carruagens de manequins
As ruas e suas vísceras
As avenidas e seus coágulos
As praças e suas próteses
O asfalto obturado
expõe os delgados caminhos da solidão
nessa ilha venenosa e incurável
em que escre
————–vivemos.
*
So(m)bras
Nesta cidade a que regresso
somente um rio me recorda.
David Mourão-Ferreira
Vejo o rio que corre
em Cataguases
– é o mesmo vário rio
que (es)corre em mim:
educando-me pelas encostas
com lições de cheias
e úmida cartilha de enfados.
O exemplo da água que f(l)ui,
com sua impessoalidade e inconcretude
crava-me um sertão nas entranhas.
E um acúmulo de pedra nas vísceras
embrenha na alma tantos eus.
Essa sombra, essas sobras
boiam indigentes, como um feto
em placentária
—————-clandestinidade.
*
Ruínas
Que importa a cidade de cimento,
com seus ombros e pulsos de aço e ferro?
Abgar Renault
Cadáver de um prédio
corpo inconcluso
organismo em ruínas apedrejado pela incúria pública
Contemplo o esqueleto de cimento
contrastando com a opulência da avenida feérica
com suas vísceras à mostra
como um cão faminto
sem força para rosnar
sem alma
sem nada
desossada estrutura, palavra
sem cal
nem mal
Lugar sem nome
vazio que se impõe
ovário vertical germinando silêncios
túmulo de quê histórias?
Apenas um espantalho inútil
na lavoura de espantos da metrópole
Passam por ti os homens
não se movem
nem têm medo
Apenas um dia depois do outro
e a infâmia da ilha que nos habita.
*
Variação sobre um poema de Marçal Aquino
——————–Outro dia
faleceu a puta mais antiga
da cidade.
Devorada por um câncer,
a quimioterapia rareou seus cabelos
impingiu-lhe uma face esquálida
e a boca semiaberta e murcha
realçava a minúscula
povoação de dentes.
Seu tempo, um rol de incertezas.
Sua vagina, um cemitério de espermatozoides.
Jamais reclamou da sorte,
não teve patrão nem FGTS
não falava mal dos políticos
respeitava as religiões
pagava as contas em dia
mas desconhecia o que foi
o maio de 68.
Em certa manhã de primavera
viram-na contemplando
os flamboyants da Avenida
como uma dama num quadro de Van Gogh.
Em um Natal distante
levou presentes às crianças do Orfanato
e assistiu à Missa do Galo
indiferente ao aço dos olhares
à labareda dos comentários.
Gostava de jogar na loteria
na esperança de mudar de vida.
Enquanto seu enterro atravessava a cidade
o comércio não baixou as portas
um taxista palitava os dentes
um mendigo inventariava uma lixeira
o engraxate sentado na barbearia
observava o comboio ferroviário
que invadia a cidade feito uma língua metálica
como tantas foram as que lhe roçaram a buceta.
Falavam que ela era amante
de um mandachuva da política
mas nunca frequentou os clubes
não saiu na coluna social
nem recebia convites
para as solenidades da prefeitura.
Restaram-lhe tantas rugas
crateras de celulites
feixes de pelancas pelo corpo,
corolário das entregas
mas se importava mesmo
é com as cicatrizes na alma.
Votou sempre na Arena, mas amava JK
não sabia o que era estadista
mas chorou no suicídio de Vargas
tinha medo de comunista
ajudava ao asilo de idosos
não passava debaixo de escada
mas se confessava aos domingos.
Dizem que emprestava dinheiro
detestava a servidão de gigolôs
acompanhava a novela das oito
era viciada em cibalena
e guardava um serrote,
lembrança do pai marceneiro.
Se amores teve, nunca disse seus nomes,
mas a foto de um galego de chapéu
dividindo espaço na penteadeira
com batons, esmaltes e brincos,
falava dos caminhos de um coração
tão distantes como a esperança
que sempre a desacompanhou.
Morreu sem nenhuma presença
sem vela nem orações
a puta mais antiga da cidade.
Mas a enfermidade
da qual nunca se livrou
foi uma tristeza
escondida em suas vísceras,
a jornada na náusea da noite.
Um dia alguém quis saber
por que não teve marido nem filhos.
Outro, a razão de sorrir com tanta facilidade
apesar de seus desertos.
Mas de si não escondia
que a rotina e a maternidade
e uma vida feliz na COHAB
trariam o desgosto e o inferno.
Preferiu a rotatividade das camisinhas
e os gemidos clandestinos
a trocar fraldas e ouvir choros.
E sua coleção de Sétimo Céu
empanturrando as gavetas
tinha mais vida que a realidade.
Findou junto com o século a puta mais velha da cidade,
sem conhecer o novo milênio
sem testemunhar o 11 de setembro
nem os terremotos do Japão
e também não sabia
que na Abbey Road, em Londres,
há a faixa de pedestres mais famosa do mundo,
mas dentro dela outras
tragédias se passaram.
Morreu num dia sem jogo
com botequins vazios
e as unhas por fazer
sem meninos brincando na rua
sem foguetes estourando nas vilas
e os porcos de dona Alzira
cevando no chiqueiro.
Numa tarde comum
com a solidão de nuvens carregadas
roupas mergulhadas no anil
a felicidade apequenada nos becos
que impunham aquele mesmo vazio
com que as árvores
sabotam as ruas no outono
e desfolham a alegria das meretrizes.
*
Insularidade
Somos todos estrangeiros
nesta cidade
neste corpo que acorda.
Heitor Ferraz
Passageiro num fim de dia extenuante, o Grande Circular deixava a W-3 Sul e contornava a pista de retorno em frente ao Corpo de Bombeiros para penetrar no amplo sistema viário que leva ao Setor de Embaixadas, ao Aeroporto, à Via L-2, ao Núcleo Bandeirante e à Saída Sul, quando minha atenção migrou das páginas que eu lia, para flagrar o sujeito ao meu lado a tentar o diálogo, mas meus olhos detidos numa leitura intensa e sedutora de A morte Feliz, de Camus, ainda não haviam permitido desviar o olhar para aquela criatura que me fitava, com a intermitência de miradas esquivas, desde que tomei o coletivo no ponto perto do Brasília Rádio Center. Concentrado estava, concentrado fiquei, em Patrice Mersault, em Roland Zagreus, num ponto qualquer da Argélia, onde o livro me transportava numa velocidade superior à do coletivo, aos mundos absurdos da existência humana. Nesses longos minutos de assédio ocular, diante da minha imobilidade alheia aos sentimentos e atitudes próximos, a impaciência da alma ao meu lado ia agredindo minha leitura, uma leitura sobre questões intrigantes da natureza humana. Mas o que poderia ser mais intrigante que a sua insistência em ser notado, ouvido, além do mar de nadas e obviedades que nos cercavam?
Examinei, de soslaio, aquele homem bem trajado – quem era? de onde veio? por que andava de ônibus? para onde ia? teria me reconhecido? não, eu não o conhecia, nunca conheci ninguém, não me importo – tentava estabelecer um contato, ainda que mínimo, para quebrar a onda de silêncio e solidão que procelavam dentro dele, em meio àquela profusão de corpos num coletivo, para fugir à transitoriedade dos relacionamentos de um ônibus de rua. Nem isso, nem essa certeza de que a sua presença reclamava a minha ou de qualquer outro, foi capaz de furtar-me em minha faina de leitura obcecada, Camus me dizendo coisas, Era uma nostalgia de cidades cheias de sol e de mulheres, com tardes verdes que cicatrizam as feridas. As lágrimas irromperam. Crescia nele um grande lago de solidão e silêncio, sobre o qual o canto triste de sua libertação… e eu, quando muito, retirava os olhos da página e olhava lá fora, e via lá fora a rua, a rua não é comigo, lugar de seres taciturnos, embotados, sem graça, e eu? indiferente aos apelos incógnitos do passageiro desconhecido, negligente com o resto do mundo, para o que se passava em meu derredor, numa imutável e automática atitude que se repetia cada vez que eu viajava naquela linha em direção à minha casa, depois do cansaço habitual da vidinha besta de bancário. E como sempre alguém ao meu lado, um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Alguéns. Nem o vozerio, nem o barulho da catraca, nem os sinais de parada, as freadas bruscas, o mau humor do motorista, a cara feia do cobrador, os painéis lá fora, as casas, as pessoas paradas nos pontos, na avenida anônima: artéria endoidecida, com seu fluxo enfurecido e divergente de feras metálicas, nada me retirava de meu mundo de mergulhos profundos nas páginas de um livro. Nesse dia era A morte Feliz, mas podia ser que eu estivesse noutras viagens: Lorca, Pessoa, Bandeira, Dostoievski, Borges, Camões, Cortázar, Rosa; ou entre o niilismo nietzschiano e os sermões do Padre Vieira – e eu reagiria da mesma forma, nem um olhar, nem um sinal de interesse, fosse o grito ou fosse o silêncio, fosse o ônibus vazio ou o acidente na pista.
Nesse dia a presença daquele senhor me incomodava e isso se tornou perceptível aos seus olhos, o que não evitou uma abordagem em tom cavalheiresco, que de início não me entusiasmou. O homem de terno, gravata e celular pendurado no cinto, que vez por outra tocava e ele, laconicamente, atendia e, num monólogo ininteligível, dispensava quem chamava do outro lado da linha, tinha visível necessidade de ser ouvido, esse homem pedia socorro sem gritar. Ninguém o sentia, muito menos eu. O telefone tocava – isso se repetiu umas quatro vezes no trajeto – e sua recusa em atender aos chamados estava mais ligada à necessidade de falar com alguém que estivesse perto e suscetível de compartilhamentos.
Tirei os olhos rapidamente do livro. Fechei-o e ele leu, com interesse incomum, pronunciando em voz alta, num gesto de louvação pela leitura especial e querendo entabular um diálogo que parecia não ter, pelo menos para mim, chance de continuidade.
Eu não queria conversar com ninguém. Desde a manhã, quando a cena da copeira pulando do vigésimo oitavo andar das torres gêmeas do edifício do Congresso inquinou o meu dia com sua carga de espanto e horror, eu não conseguia ver nem ouvir ninguém. Nunca vira a morte tão de perto. Nunca a pequenez humana me fora revelada com tamanha indigência psicológica e espiritual. Eu estava entre os próprios escombros da humanidade inteira. A morte ali, com todos os seus tentáculos. O seu rosto cruel e inamovível. Essa mesma que eu tentava compreender num livro, distante do indesejável fim que a todos sucede: muitos, iguais em sua derradeira hora, seguindo a ordem natural das coisas; outros, realizando a ruptura brutal e sistemática, porque não resta outra coisa a não ser pôr fim à existência. A morte, impassível, incontornável, a morte mesmo, física, imoral, intransponível, esta nunca tinha soado com tamanha inclemência quanto a que vi ainda cedo, quando me preparava para mais um dia de trabalho, diante de um corpo recolhido do espelho d’água da Praça dos Três Poderes e estirado ao chão, coberto por um lençol parco na burocrática espera da perícia policial. Meus olhos não tiveram tempo de dizer um oh! de comiseração, de estarrecimento diante da brutalidade insinuada contra si mesma e levada às últimas consequências. E, no fim do dia, o sujeito ao meu lado, querendo arrancar-me, a qualquer custo, do meu arrebatamento, da minha estupefação, da minha leitura, porque aos seus olhos a minha completa insubordinação ao que me circundava, imagino que isso estava no seu íntimo, a minha indiferença era assassina, como era a de tantos quantos levaram à morte aquela mulher de quarenta anos, separada, mãe de três filhos, que morava numa biboca qualquer e trabalhava feito burro de carga para sustentar os quantos ela pôs no mundo.
Eu soube que dona Jandira pulara, numa atitude escapista, quando sua vida já não tinha mais jeito. Não tinha para ela, que não via luz no fim do túnel, quando seus caminhos haviam sido despedaçados pelo marido alcoólatra e omisso; sua vida havia sido rejeitada pelos próprios sonhos inconclusos – malsucedida no emprego e no amor, atolada em dívidas com agiotas que oferecem o dinheiro fácil às classes menos aquinhoadas do funcionalismo, sobretudo aos incautos empregados de prestadoras de serviço que atendem nos Ministérios e outros órgãos públicos, morando longe, numa dessas invasões subumanas que sitiam o Distrito Federal – um vergonhoso cinturão de miséria – toda a sua vida girava em torno de uma rotina desgastante, cansativa e sem retorno financeiro, sem a mínima contraprestação do bem-estar material e do prazer íntimo. A derrota, sim, em carne e osso. Estava ali, finda, não esperou a morte chegar, foi ao seu encontro pela via da coragem insensata. E dentro do ônibus, com aquele homem tentando chamar minha atenção, eu tinha meu coração, meus olhos, meus pensamentos voltados pr’aquela criatura que já é morta há quase doze horas e não entrará para a história por nenhum ato de heroísmo, ninguém se lembrará de Jandira, senão alguns da família traídos em sua autoestima pelo ato da mãe que não buscou sair do labirinto. Sim, quem sabe, eu me lembrarei também dela quando ler Camus, ele que tanto quis entender e fazer entender a angústia humana, dos gritos submersos que não conseguimos exteriorizar, da oscilação de nossas revoltas, do percurso angustiado de tantos corações revoltados, do homem sempre em núpcias de fogo com sua identidade estiolada pelos venenos da realidade. Vou me lembrar de Jandira, quando outro sujeito sentar-se ao meu lado emcompridando conversa, no ônibus, no banco vazio da minha superquadra, na espera da sessão de cinema, na fila do orelhão – onde sempre haverá gente numa intensa procura, de olhares, de conversa recíproca, de diálogo para enfrentar a tragédia que culmina todos os dias à nossa porta, porque nada escapa ao fluxo das esperanças humanas e não podemos ser nuvens fugidias que carregam para aqui e para acolá sua opacidade, seu isolamento, sua fúria, sua liturgia de privações.
O suicídio de Jandira estará amanhã nas páginas do Correio Braziliense, no necrológio que ultimamente tem se saciado com o sem-sentido e a banalidade da vida e da morte, com todos os seus requintes de perversidade, que a crônica policial da sociedade moderna registra sem constrangimentos ou pudor. Camus a me dizer, como a espada da verdade desferindo seu golpe, que o único problema realmente sério é o suicídio, e Jandira que já foi velada no Campo da Esperança e jaz em cova rasa, me revelando os escombros insuspeitos da nossa condição.
Muito prazer!, disse-me o cavalheiro decepcionado com meu jeito de poucos amigos e meus olhos escondidos no livro, pedindo-me licença para sair, para saltar na próxima parada, sim, foi o que disse aquele que atendia pelo nome de Antonin Artaud. Eu não podia supor: havia perdido a oportunidade de romper com nossa solidão urbana, essa solidão tantas vezes maquinada ou dissimulada pelos convívios impossíveis, que nos torna estranhos e mutilados, pela condição errante de nossos corpos que não sabem decodificar a aflição e o desespero, tragados que somos pela inevitabilidade da roldana diária, com seus dentes vorazes a nos convocar para a imensidão oceânica das necessidades modernas. Só tive tempo também de dizer o socialmente óbvio e seco prazer em conhecê-lo, meu nome é Bertolt, e vê-lo atravessar a via ainda movimentada naquele início de noite, noite encrespada, sendo engolido por aquela jiboia de faróis, ele, ele nem soube se eu era de Alagoas ou de Minas Gerais, nem dele soube nada mais que um nome e uma angústia latente em seu íntimo, e era fim de expediente, e vislumbro aquele solitário homem de terno e gravata que atendia pela graça de Antonin Artaud ser devorado pelo ventre da noite, desaparecendo no breu da quadra mal iluminada, em busca de sua essência perdida no tumulto doméstico, a ilha invisível de todos nós, escuro território onde acabamos por nos desferir o golpe de misericórdia e montamos, sem apelos, o mosaico de nossas próprias vidas.
*
Dies irae
Que coisa é esta que
assoma o animal em nós?
Ésio Macedo Ribeiro
…naquele dia eu estava tomado por um sentimento que verdadeiramente era o acúmulo desses anos todos pilotando os teares. Você não sabe o que é aguentar todo dia o contramestre na sua cabeça ferroando, ferroando, feito uma britadeira na sua cabeça, a produção tá caindo, as encomendas tão chegando, e vocês aí, como se nada tivesse acontecendo, o sangue subiu mais do que devia, o Nestor era carne de pescoço, um ponta-de-aterro na nossa cola, unha-e-carne com os patrões, ninguém suportava mais tanta opressão. No final das contas, quando você sai do turno, não passa de um monte de ossos coberto de pó, resto de algodão pelo corpo, aquela fuligem toda do salão grudada em você, onde as máquinas martelam como bate-estacas, e isso não muda nunca, é aquela maratona de engrenagens, lançadeiras que vão e vêm, fios se entremeando, o tecido saindo lá na frente feito uma língua de fogo e os rolos se amontoando e as carretas da transportadora engolindo um por um e saindo direto para a estrada, e você ali, um fantoche num moedor de carne e no outro dia a mesma coisa, você pode estar dormindo o sono mais profundo, e aquela chaminé expelindo seus apitos e você levantando da cama, o sono desfeito, a bicicleta encostada no muro, entra dia, entra mês, chega ano e rompe ano, a mesma rotina, a mesma repetição. Sei que eu estava no pior de mim, quase trinta anos e ele me encavalando com reclamações, eu peguei a primeira ferramenta que estava ao meu alcance e fiz a merda. Não deu tempo pra mais nada, o sangue já foi logo se espalhando no chão, uma mistura de poeira e líquido vermelho, aquela gosma de vingança e ódio lambuzando o chão da companhia, que ia fazendo uma pasta nojenta, tão nojenta como aquele sujeito velhaco e puxa-saco dos patrões. Não segurei, olhei para o céu e não tive dúvidas, preferi o risco, pagar o preço, mas ali não dava mais pra continuar. Ali, não. Qualquer lugar do mundo era melhor. A Manufatex era minha vida, sim, era, mas aquele merda ali me enchendo o saco o dia todo, ah, isso não, eu não podia mais. No fim, eu ouvi um dia da Juraci, a gente sempre acaba no olho da rua, eles não têm misericórdia de nada, de ninguém. Lembrei do Vandico, lutou tanto no sindicato pela gente e levou um carta vermelho. Tá marcado na cidade, não encontra colocação em outra fábrica, pois a família Furtado controlava tudo. Então vim parar aqui, doutor, é isso: eu não sou barata, o sangue ferveu, eu perdi o juízo, não deu pra segurar, né, e aquele mingau vermelho no chão da estamparia, eu aqui vendo o sol nascer quadrado, não sei o que é pior, num sabe. O senhor pode colocar aí, que eu assino, vou cumprir o que devo pra justiça, seja o que Deus e os jurados quiserem… Mas desaforo eu nunca mais vou levar pra casa.