Quatro poemas e um conto de Tággidi Mar Ribeiro
Tággidi Mar Ribeiro é escritora, preparadora de textos e professora de Literatura. Tocantinense de origem, morou em Goiânia, Campinas e Dublin. Reside em São Paulo capital desde 2008. É bacharel em Letras pela Unicamp e pós-graduada em Filosofia pelo Mackenzie. Autora dos blogs Subvertidas (2011/2013) e Chistes e Poesia (2007/2014). Inédita em livro, vem sendo publicada por revistas literárias como Lavoura, Literatura e Fechadura e Gueto. Foi recentemente selecionada por esta para figurar na coletânea Degredo.
***
I
Sei do Amor só o teu rosto de mar
Onde navego com todos os ventos
(Boca)
Do Sul, amenos e secos,
Envolvem minhas velas ressabiadas
Esgarçam as cordas, zunem
Melancolias d’entre os mastros da noite
(Fronte)
Do Norte, espalham-se trágicos
No convés do meu corpo tímido
Inflamando a madeira antiga
Desembestando o leme da fortuna
(Olhos)
E nas escotilhas, enredando-se
No tempo ferido pela navalha do desejo
Aliam-se no porão os Lestes ruminando a dor
Enquanto o medo espalha-se com os Oestes
Do teu rosto de mar sei só o Amor
Onde nua naufrago
*
II
Vejo azul céu de domingo em São Paulo
Passam pássaros esparsos, asas espalhadas
Aviões
Voam caem com leveza de papel
São Paulo impensável de domingo
Desejo?
Fazer durar a tarde
De uma tarde que não acabe
Fazer vagar e errar a hora
Prender o tempo em seu próprio labirinto
*
III
estou de costas para o mundo e o contemplo
um indígena de passado claro e dianteiro
atravesso não séculos nem milênios
mas o segundo entre a respiração da primeira célula
e o nascimento da Anticristo
sinto em língua e saliva dor e horror
as multidões de desejos desencontrados
minha mão pousa sobre corações contritos
e arranca pelas gargantas o grito essencial
nasce um universo
*
Poema de Natal
Franzir o cenho
Abaixar a cabeça
Menear a cabeça
‘Não’ três vezes
*
L.
Alguma coisa irrita as pálpebras os cílios colados de gosma amarela pequenos terremotos no globo são sonhos ou eu insisto em manter fechados os olhos porque não. São sonhos não quero abrir os olhos meus braços me abraçam desafetos alongam-se e às costas enlaçam-se meus braços me prendem num laço de fita. Quando eu era criança usavam-se fitas nos cabelos das meninas não quero abrir os olhos a luz cavando um buraco na retina da menina dos olhos eu era de quem. Ah… me levava pela mão a menina o cabelo preso pelo laço balançava para lá e para cá para lá e para cá fazendo cócegas no pescoço. Eu sorria a menina eu me sorria a luz nos dentes brancos. Eu nunca dei a luz. Na parte interna das pálpebras movem-se luzes sem forma algo me aporrinha as luzes o buraco escuro da menina dos olhos. O meu corpo o buraco escuro e sem vida.
A luz molesta o branco dos olhos as paredes os lençóis a camisa meus braços. A raiva é branca. Eu já disse a menina um corpo escuro sob laços brancos era de quem desatava os laços desatava os olhos desatava as pernas quem dizia com as mãos. Por sobre meus joelhos de menina as mãos quentes a passagem da luz muito pouco eu resistia ele me chegava ao ouvido um sussurro morno entre cócegas repisava o amor imenso. Eu a menina dos olhos; ele o amor só queria ver. Ele nunca via, não, nunca, nunca. O sussurro cócega me falava ao meio das pernas: a menina mais bonita, a menina mais doce. E a língua estalava no açúcar até que um gemido profundo findava a consulta eu era a melhor, a mais bonita. Estava tudo bem o amor dizia e ajeitava os laços em desalinho. Entre o veio e os olhos, o horror a dor a culpa e o nada – porque eu não entendia. Nos sonhos cobras me entravam pelas pupilas.
À tarde, o amor começa a usar os dedos. Talvez doa, ele dizia, mas se doer é só um pouquinho, fique calma, depois vai gostar, não quero que fique doente, é tudo muito perigoso nesses dias. Os vírus, as bactérias, os fungos, os parasitas, os meninos da escola, em excursões e viagens pode-se pegar inúmeras doenças. E sempre o meio das pernas a pressão a dor os dedos. Eu sei, não se preocupe, a dor já vai passar. Eu só preciso ver se está tudo bem. Quente macio carne apertada. Os gemidos do amor. Ma… Ma… Ma… Ma-ma… Maravilhosa. Você é maravilhosa! Você é maravilhosa! Você é maravilhosa! Você é maravilhosa! Você é maravilhosa! Você é maravilhosa! O amor ofegante fazia algum movimento rápido me abria mais as pernas por vezes uma ventosa, por vezes uma adaga, um dia o amor rasgou algo em mim. Ao fim um alfa prolongado, os resfôlegos, a exaustão. Eu não estava lá. Linda, linda, ele dizia me chamava. Eu estava do outro lado do quarto no canto sem voz. Eu me perdi do meu corpo.
Um dia o amor chegou para um novo exame. Eu devia fechar os olhos que eu nunca nunca mais vou abrir. Eu devia sentir. Talvez doa, ele disse, mas é para o seu bem. E depois você vai gostar. Os exames cada vez mais caros, ainda bem que ele estava ali, a minha saúde se assegurando de que eu permanecesse sempre a mais linda, a mais doce, a menina dos olhos, a pupila. Então o amor me rasgou novamente como uma carta sem serventia, mais fundo, em duas, eu fui jogada para o teto um crucifixo, e entre as minhas pernas embaixo o corpo nu do amor repetia que bom que você está gostando você está gostando. Ah, que sangue lindo ele dizia, minha mulher, agora você é uma mulher. E minha barriga começou a inchar como um balão mas era um cestode então o amor disse eu te amo tanto tanto eu cuido tanto de você e mesmo assim você está doente. Agora não tem mais jeito agora não vai ser mais como eu sempre faço tão gostoso assim. Na clínica branca de novo minhas pernas abertas só tenho as pernas abertas eu não posso manter minhas pernas fechadas? Me perguntam me pergunto. Toda culpa. Na clínica sobre minhas pernas abertas um lençol branco alguém diz: vamos arrancar fora esse filho. Esse filho. Esse filho.
Tira isso de mim. A lembrança a camisa de força o amor aquele engravatado vem aqui manso como um boi velho. Ele estava aqui! Ele está aqui! Eu disse não, eu disse de novo não, eu digo não. Eu não sou louca, eu não sou louca, eu não sou louca. Ele quis me envenenar com aquela seringa. Longa como uma tromba um cestode ao mesmo tempo jorra e suga e meu corpo ali um buraco sem vida. Canalhas. Vocês são piores que ele. Porque vocês sabem que ele trabalha para o governo e vem aqui jorrar e sugar e eu nesse poço de fluidos imundos, esses venenos, esse enxofre, essa baba que escorre entre o meio das pernas enquanto ele diz que sou linda, sou linda, sou cheirosa, ele me ama, ele me ama. Ele quer me matar! Canalhas! E se eu grito e se me contorço e se choro e se desfaleço e volto a morrer. Eu pedi, eu pedi, eu pedi – vocês riem do outro lado das barras, vocês se desesperam no gozo de me conter os braços, as pernas, a garganta, o mínimo movimento vivo do meu corpo estraçalhado perfurado por mil seringas envenenadas. A camisa de mil laços.
Eu gritei meus senhores seus filhos da puta eu gritei e tudo era branco. Chamem o pai eles disseram. Meus senhores filhos da puta vocês sabem, dizem não acreditar mas sabem. O amor passou a mão sobre meu rosto e disse adocicado filha era melhor para mim ele dizia, acalme-se vai ser rápido e eu vi médicos muitos muitos e enfermeiras todos e uma massa informe no quarto todo iluminado se ouvia esse aqui nunca vai ver a luz. Esse aqui. Meu corpo escuro um buraco sem a vida.
Quando então do outro lado do quarto voltei a mim. Disse-gritei. Eram filhos do pai. O pai da menina. Dos olhos. Das seringas.
No abraço lúcido da camisa eu não vou abrir os olhos. Eu vou arrebentar a garganta até que esses filhos da puta venham me tirar daqui. Até arrebentar as grades as paredes a raiva do branco.
Eu não me encerro aqui.
Quero caminhar à beira-mar onde a areia engolfa os pés e o mar nunca ultrapassa as margens.
E não importa que falte ….. O quarto está tomado pela verdade.