Quatro trechos de Mariano Marovatto
Mariano Marovatto nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1982. Entre suas publicações recentes estão os livros, Estirâncio (7Letras, 2019), Casa (7Letras, 2015) e Vinte e cinco poemas, em parceria com Francisco Alvim (Luna Parque, 2015). Cantor e compositor, gravou os discos Selvagem (Embolacha, 2016), Praia (Maravilha 8, 2013), entre outros. Toda a sua produção está disponível em www.marovatto.org.
Os quatro trechos abaixo são do livro Estirâncio (7Letras, 2019).
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Apagar a origem é desmerecer o trajeto, subtrair a expectativa da chegada, tornar involuntário o retorno à casa. Já no chuveiro, o vozerio do estirâncio é desfeito. Depois, ao deitar-se, a cabeça pesa e retorna a memória do estirâncio como se outro contasse minha história; agora a escuto, não mais a vivo. O acalanto suspende o dia que ruiu na entrada de casa e desapareceu no ralo do banheiro. O corpo recobra ainda qualquer coisa, pouca, do tamanho de uma concha, e efêmera, como a espuma da onda a ressecar na areia.
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Conversar com o estirâncio significa relatar o seu aspecto. Se ele parece afirmar algo, a ação possível é preencher listas com descrições. Sua linguagem, surda e intransponível. Seu terreno, vivo e impenetrável. Já a paisagem reversa – coqueiros, trilhas de areia, a lagoa – é um gigantesco objeto de armar. O estirâncio é receptível e impraticável.
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No lusco-fusco, caminho acompanhado, de mãos dadas, na praia, observando o despertar das dezenas de maria-farinhas. Andamos para o sul e um pequeno animal anda a passos mais rápidos, à nossa frente. Aumentamos a velocidade e o pequeno animal, um pouco mais escuro e mais verde do que uma maria-farinha, também aumenta, fugindo de nós. Aceleramos mais, a ponto de correr, e ele corre, foge desesperado, mas nunca para os lados, segue a linha do estirâncio, rente às ondas. Nossas passadas são de gigantes, infalíveis. Seus passos laterais e velozes, como os de uma maria-farinha, devem ser inaudíveis caso a praia se calasse. Ele para. Encosta-se na espuma ressecada de uma onda. Não se move com a presença gigante dos nossos pés. Desistiu do jogo da perseguição. Resignou-se; uma resignação imensa para a medida do estirâncio. Nossos dedões cutucam o seu corpo. É mole, alheio. Uma última cutucada e a constatação de que perseguíamos uma alga morta, animada pelo vento.
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Na lagoa, novamente. Não se deve confundir os pedaços de plástico trazidos pelos estrangeiros, abandonados em locais específicos, tratados como estátuas pela idade do estirâncio, com restos de acampamentos. Não há nenhuma ligação aparente da lagoa com o mar ou quiçá com um rio. A lagoa tão sem vida observa o movimento do sol. O vento é raro e durante a noite a lagoa desaparece. A lagoa, presa fácil das cidades antigas, sofre uma morte extremamente lenta diante do estirâncio. Os pedaços de plástico vestidos pela poeira escura são como os camaleões que habitam os sítios arqueológicos. A observar a lagoa, há quatro pequenos pássaros de cauda longa, dois urubus e um sabiá. Esses últimos três dividem o mesmo dendezeiro. Os urubus saltaram há pouco da carniça provável, camuflada pelas palhas no chão, para perto do sabiá, que canta. Adiante outro cajueiro, maior, onde habitam três meninas negras que colhem os frutos suados da árvore. Me oferecem um, grande e amarelo. Não como, mas levo-o ao nariz repetidas vezes.
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(Fotografia de Ana Alexandrino)