Um conto de Rebeka Campanelli
Rebeka Figueiredo Campanelli, 19 anos, mora em São Paulo -SP e começará a cursar Jornalismo no próximo ano. Atualmente escreve para uma página no Instagram (Polainas) com conteúdo voltado para cinema e literatura. Seus textos pessoais, como poesias e contos estão disponíveis no Medium e pretende não tê-los apenas como hobby e sim de forma profissional e de expressão.
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A Penteadeira
Clara não estava preparada para entrar na casa de sua falecida tia naquela manhã. O percurso demorado, devido ao comércio reaberto na cidade depois do isolamento, mitigou o nervoso que sentia. O centro comercial lotado, as lojas abaixando os preços para conquistar os clientes de outrora, muito azougue e animação emanavam daquele pedaço do trajeto. Contudo, na área mais afastada, ao passar em frente ao cemitério havia muitas pessoas. A cidade de Cunha, interior de São Paulo não foi flagelada como a capital, contudo diversos mortos foram transferidos em virtude da demanda intensa da capital e agora os parentes poderiam se despedir adequadamente.
Daniel estacionou o carro logo em frente ao degrau de entrada, a tia de Clara, costumava dizer que casas de valor iniciam por uma escada, para elevar a estima da mesma. Ela passava muito tempo naquele sitio, quando crianças costumavam se encontrar perto do Lavandário local, na pousada de seu pai, ela e a tia sempre colhiam lavandas e voltavam caminhando. O fato de sua tia ter morrido naquela casa deixava-o preocupado com o impacto em todo o amor de sua companheira naquele lugar sagrado.
– Quer que eu entre com você? – Perguntou Daniel obervando Clara que olhava melancolicamente pela janela. Ela parecia muito com a tia que a criara no lugar da mãe que a deixou para trás. O cabelo loiro logo abaixo dos ombros, o corpo e no modo imperativo de agir. A única diferença eram os olhos, enquanto os da tia eram verdes, os dela eram castanhos como os da mãe, o que ela detestava.
– Não, pode esperar aqui ou visitar seu pai, ficarei bem, obrigada.
Após um beijo rápido, ela saiu do carro e acenou para ele. Tinha consciência que ele sabia de seu estado frágil, mas não queria que visse, não naquele momento de despedida. Quando o carro deixou a propriedade, ela respirou fundo e entrou. Sua tia Verônica a acolheu com cinco anos de idade, seu tio Cláudio estava viajando a trabalho e naqueles dias ela dormia na cama da tia embalada pela voz doce que explicava os gracejos que uma casa deveria ter.
A primeira coisa que gostou na casa foram os vitrais da porta, intensamente coloridos, diferente do restante da casa aonde predominavam tons claros de rosa contrastante com os móveis marrons. Quando seu tio voltou, a abraçou fortemente, logo em seguida pegando em sua mão minúscula, subindo as escadas e contando sobre tudo que seria colocado no quarto dela, que ficaria no final do corredor.Inúmeras vezes corriam por aquela escada, brincando, sempre rindo. Com doze anos de idade, decidiu que seu lar poderia ter sido descrito em alguns dos livros de francês Hodgson Burnett, uma das autoras que ela lia na biblioteca da escola, sempre relendo quando podia.
O primeiro momento doloroso que teve ocorreu aos dezesseis anos, seu tio vinha tendo crises frequentes de asma, agravado pelo clima frio de Cunha, ela sabia que ele morreria, então todas as tardes escutava o narrar suas opiniões sobre marcenaria, seu hobby preferido e como se considerava criativo pelos brinquedos que fazia para ela. Alguns dias antes do fim, ele lhe deu um broche de passarinho, por ela ter quebrado a perna tentando alcançar o ninho de um no quintal quando criança. O funeral ocorreu na cidade mesmo, sendo enterrado logo em seguida no fundo do quintal, junto com seu pai. Foi a primeira vez que viu sua amada tia chorar.
Clara tinha caminhado por todo o primeiro andar da casa, parando na porta de correr que dividia o escritório do tio da cozinha, como era feita de vidro, as duas faziam caretas para distrair o tio do trabalho. Sentada na poltrona da tia, que exigia uma coisa para ela em todos os cômodos, refletia. A maioria das pessoas demonstrava estarrecimento ao ouvir dela que não sentia falta da mãe ou considerava triste ter sido acolhida pela tia. Era simples. O mundo inteiro não valia metade de sua vida ali.
Tia Verônica fez dela a mulher que era hoje, eram melhores amigas, se completavam e amparavam. Ela levantou e subiu para o segundo andar, sorrindo ao ver a prateleira feita para suas malas. Mesmo estudando em uma escola simples, Clara conquistou uma bolsa para estudar Luteria em um conservatório na capital de São Paulo. Felizmente não houve reações negativas, tanto que em seu aniversário de dezenove anos, sua tia confeccionou (com as ferramentas do marido) aquela prateleira para ela poder guardar as malas quando voltasse e ela voltava sempre que podia.
Encontrando Daniel por acaso, que foi estudar Hotelaria para seguir com o negócio de seu pai, o ir e vir daquele local tornou-se rotina e menos de dois anos, estavam noivos. Ela seguiu até o fim do corredor floresta, nome que deu logo que chegou em virtude das paredes serem verdes, encontrando seu quarto como deixou um dia antes de casar. Estava incrivelmente nervosa e sua tia a fez rir contando como acabou suja de bolo no próprio casamento enquanto organizava os brinquedos de Clara, que seriam doados para a escola.
No dia do casamento, sua tia realizou o ritual de todas as manhãs. Tinha de herança de sua mãe uma penteadeira magnífica, com três espelhos e várias gavetas, além de um porta-joias embutido. Todos os dias ela se sentava e seus cabelos eram escovados e observava como aquela mulher era elegante, quando criança, gostava de imaginar que a tia era uma princesa que fugiu para se casar com o tio e trouxe somente a penteadeira e um colar de prata com apenas uma pérola que ficava sempre com ela. Foi seu presente de casamento aquele colar, além de ser levada ao altar, que era a árvore que nunca conseguiu subir.
Não sabia o que tinha feito para merecer tanto, aquele dia foi um dos melhores de sua vida. Enquanto caminhava em direção a Daniel (que estava especialmente lindo, como todos os demais dias) e pensava como ele era a cópia fiel do pai, alto e de cabelos pretos como os olhos, chegou a agradecer a Deus por sua mãe a ter abandonado, por ter a abençoado com tudo aquilo e sorriu a noite interia na festa realizada na pousada de seu sogro.
Moravam em um apartamento em São Paulo e com o isolamento não puderam visitar seus parentes como comumente faziam. Seu sogro estava bem, a cidade de Cunha conseguiu lidar perfeitamente com o vírus novo, mas o problema era a condição de saúde de sua tia. Diferente do tio sofria com problemas no coração e sua consulta foi cancelada pelo agravamento dos casos de coronavírus na capital e os hospitais focados em atender os infectados. Clara recebeu a notícia por um dos empregados do Lavandário, que suspeitou da falta de dona Verônica de manhã para colher sua lavanda como sempre fazia. O médico local afirmou que tinha sido durante a noite, o coração simplesmente parou e logo em seguida ela foi enterrada ao lado do marido, costumava dizer que não queria um funeral e conseguiu seu desejo.
Não se coloca em palavras o que foi sentido. Imagine um mar sem ondas, um sol sem brilho ou uma águia que não alçará mais voo e quem sabe, não lhe garanto nada, entenda o que ocorreu naquele coração. Um mês de luto sem fim, não podia sair do município, ela não chorou em momento algum. Daniel chorou por ela, porque um coração ligado intrinsecamente a outro sente de forma igual, as lágrimas dele foram às dela.
Sentada naquela penteadeira os sentimentos retumbavam silenciosos como um campo que acolheu uma guerra acabada. Olhando naqueles espelhos, o mundo detinha três dimensões e ela não compreendia quaisquer razões. O vaso que costumava receber buquês de lavanda estava vazio. Cessou e findou, naquele instante sua tia havia partido. Ouviu passos e olhando para o topo da escada viu Daniel, que a alcançou com uma expressão preocupada, que turbava seu belo rosto.
Ele não perguntou nada, porque sabia de tudo. Viu a escova em cima do móvel, pegou-a e olhou para sua esposa, com uma pergunta estampada em suas íris. Ela assentiu com a cabeça e ele colocou-se atrás dela. Pegou seus cabelos e começou a penteá-los suavemente, repetidas vezes e com esse movimento sutil, Clara começou a chorar, primeiramente em silêncio, um choro noturno, e conforme Daniel continuou ela começou a soluçar e a tremer, sendo amparada por ele.
Sem cálculos de tempo, porque não se mede choros, nosso casal saiu de mão dadas da casa caminhando calmamente em direção ao Lavandário, afinal mesmo que nossos amores morram, nosso legado permanece, tão forte quanto uma lembrança.