Resenha: Das Águas (conto de Cristiane Sobral) – Por Jacqueline O. da Conceição
O conto Das águas é um dos que integram a antologia Olhos de Azeviche – dez escritoras negras, que está renovando a literatura brasileira, promovida pela editora Malê, no ano de 2017.
A literatura de autoria negra e, sobretudo, as narrativas escritas por mulheres negras procuram sempre anunciar uma voz em primeira pessoa, a fim de atribuírem um sujeito negro em suas produções literárias. Esse sujeito ocupa um papel de protagonista no texto e cria uma intersecção com os demais personagens. É um fazer literário que reivindica o direito à literatura, sobretudo o direito de pronunciar outras vozes que querem se pôr e falar. Quando prezam por uma terceira pessoa, seus relatos contam as histórias de seu povo por meio de escrituras tão repletas de nervuras, que, descaroçadas, somam-se com os signos que a linguística as fornece.
Falar de Cristiane Sobral, não é apenas repetir os numerosos adjetivos que a pessoa-mulher-mãe possui, mas sim propor um mergulho nas profundezas de Das águas, um conto daqueles para depois que o mar passa de seu momento de ressaca e retoma aos estreitos e duvidosos bancos de areia com a sinalização de cuidado! “Sou água mansa que afoga”, tomando por empréstimo a frase da Ìyákekere e doutoranda da Unicamp, Marta Ferreira.
Omí é a água em sua natureza, uma personagem que não entende as dualidades do abebé de Òsún e que resolve ir em busca do encontro. Mas, do encontro com si mesma. Com a sua subjetividade fora de um mundo que a princípio não é o seu. Com o pôr para fora de sua negritude líquida e concreta das águas. A personagem cresce em um ambiente de aquilombamento d’onde sua família repleta de afetos vive os sabores do simples.
No 2° parágrafo, o leitor se depara com a tensão literária desta escritura ao ler as inquietações de Omí. O trecho em que a autora destaca “estará condenada aos cantos do mundo”, retoma a ideia de uma produção literária em que o lugar ocupado pelo negro(a) era da margem. Mas agora não! Omí é a sujeita que percorre as águas do rio procurando o momento certo para desaguar. Ela não aceita mais o lugar de coadjuvante. É primeira pessoa em seu contorno total.
Ainda no mesmo parágrafo, Sobral afirma a posição de ultrapassar os racismos à paisana da vida, quando diz “teria que lidar com os paradoxos da existência”. Uma personagem que sabe e sente as dores do ser diferente pelo ato discriminatório.
Inaugurando o 3º parágrafo, a leitora atenta às malandragens literárias observará, na herança da cura de Omí, o frio da ancestralidade que a leva para a profissão futura de médica. Aos leitores que gostam de macerar o texto, perceberão a figura não anunciada de Ossãe e dos espíritos que habitam as matas e manipulam as folhas. Forças que precisam de água, assim como Omí, para viver.
A cheia da personagem se dá no exato momento de seu encontro com Òsún. Com esse múltiplo de imagens refletidas em seu espelho. Contudo com a não distorção de sua imagem refletida por ele.
Sob as águas, um tom amarelo que a princípio tentou compreender como os raios do sol penetrando o líquido transformador. Não, não era o sol. Oxum estava lá. Majestosa e vestida com o mais puro ouro, dançava sobre as águas. Nunca mais havia visto Oxum, mas sabia que era ela. Não era questão de ver. Sua energia estava ali manifesta, como parteira a anunciar o seu renascimento.
O abebé mostrava um tempo ancestrálico. Um movimento de retorno diferente do que a história contara para Omí. Suas imagens lançavam narrativas paralelas à sua própria história. Era o tempo parando. Um “flash back” de memórias adormecidas pedindo calma e sabedoria no trilhar de caminhos.
O conflito consigo mesma, através dos diálogos com o espelho até o reencontro com Òsún, faz-nos perceber que narrativas que misturam elementos da indumentária de ancestrais não precisam somente apoiar-se em arquétipos, que por muitas vezes pecam nas generalizações e diminuem a semântica do texto, matando assim suas entrelinhas. No entendimento de Literatura Abebé,1 a professora Hildália Fernandes (2017) nos diz que o espelho distorce a nossa imagem forçando que corpos se enquadrem em uma estética que não nos é possível.
Ao pensarmos no abebé e no conceito apresentado por Fernandes como uma multiplicidade de sentidos, gestos e significados, caminhamos para a compreensão do que Cristiane Sobral propõe ao leitor.
A travessia é sempre uma constante repleta de obstáculos, interrogações, inquietações, distorções, recuos até que se chegue na maturação necessária para dar o próximo passo. E o conto do qual se fala é único na forma como alinha os compassos textuais para o leitor. É simples, mas foge ao simplismo. Conta o que é para ser contado e diz o que é para ser dito na cadência das águas dos rios. É axé em forma de prosa tecido pelas mãos de quem, com olhar certeiro, entende as singularidades do abebéspelho!
1 “Escrevivências” de terreiro. In: Seminário internacional acolhendo as línguas africanas – Siala. Africanias, Imagens e Linguagens, 2012, Salvador/BA. Salvador: Universidade do Estado da Bahia – UNEB, 2012.
Referências
CORDEIRO, Hildália Fernandes Cunha. A poesia negra feminina de Lívia Natália. 48 Sankofa: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, Ano XI, Nº XXI, setembro/2018.
SALES, Cristian. “Lívia Natália: Abébé Omin – Poesia e religiosidade afro-brasileira banhada nas águas de Oxum”. Sankofa: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, Ano XI, Nº XXI, setembro /2018.
* Jacqueline O. da Conceição é mulher de axé e possui graduação em Letras Clássicas pela UFRJ e Mediação Escolar e Comunitária pela UFF. É pesquisadora da Literatura de Paulina Chiziane e da Literatura Afro-Brasileira de autoria feminina, professora da Ed. Infantil na SME de Cabo Frio, escritora com coautoria nas antologias [sobre]viver, Resistir e Lutar, do coletivo ALEPA (texto que rendeu o 1º lugar na categoria contos em 2018); Vértice: escritas negras, Ed. Malê (2019) e Antologia Brasileira de Prosa e Poesia, Ed. Sol Além Mar (2017). Atualmente cursa Pedagogia na Universidade do Norte Paraná (UNOPAR) e coordena o Pré-vestibular Social Adelaide Barbosa.