“Respire” (2014)
Respire. Direção: Mélanie Laurent. País de Origem: França, 2014.
Mélanie Laurent é uma excelente atriz. A judia francesa Shoshana, proprietária de cinema, que interpreta em Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, atesta essa afirmação. E, desde 2011, com seu filme de estreia Les Adoptés, Melánie vem dando sinais de ser uma cineasta que não tem receio de se arriscar (em seu currículo ainda há o documentário Demain, codirigido por Cyril Dion, premiado no César 2016, e o drama Plonger, de 2017). Em Respire (2014), ela se ampara em um roteiro denso e nas interpretações soberbas de duas jovens atrizes (Joséphine Japy e Lou De Laage, concorrentes no César 2015 na categoria Atriz Revelação). Adaptação do romance homônimo de Anne-Sophie Brasme, publicado em 2001 (que rendeu a Brasme, aos 18 anos, o Prix Contrepoint, em 2002, concedido a jovens talentos da literatura francesa), Respire trata da relação de duas amigas de colégio – e fora dele –, que vão da afinidade instantânea à intimidação e maltrato implacáveis.
Com belos planos gerais e abertos, Mélanie constrói um poema visual permissivo e perverso, no qual Charlie, diminutivo de Charlène (Joséphine Japy), uma adolescente introvertida – mas que cultiva boas amizades –, afetuosa – porém mortificada pelo casamento conflituoso dos pais – e ainda assim deslocada, fascina-se pela nova aluna, Sarah (Lou De Laage), que é encantadora, exótica, impulsiva e misteriosa. As personalidades díspares das garotas se atraem e elas passam a ser grandes amigas. Sarah frequenta a casa de Charlie, sabe do tenso convívio dos seus pais, do colapso do casamento. Elas compartilham aspirações e segredos. No entanto, aos poucos, a partir do inebriamento dos sentidos, da confissão física do afeto, da interdição que surge com força – como recusa, repúdio inexplicado e incompreensível (talvez resida no fato de Charlie apresentar Sarah como colega de escola e não amiga, um curto-circuito em um vínculo que nasce e evolui rapidamente) –, a cumplicidade se transforma em estranhamento, dissintonia e manipulação, que conduzem ao afastamento, ao bullying, ao desequilíbrio emocional e plantam os indícios de uma tragédia.
O que poderia ser um thriller de suspense psicológico, na linha dos duelos de caracteres dúbios e/ou complementares, como em Jogo Mortal (1972), no qual Laurence Olivier e Michael Caine protagonizam um jogo de gato e rato irrepreensível, torna-se um exame de comportamento, com várias leituras possíveis, para dar conta das escolhas e ações das jovens. Neste sentido, está mais próximo de Persona (1966), de Ingmar Bergman, em que Liv Ullmann e Bibi Anderson praticamente se fundem para depois se separarem com extrema violência, e de Três Mulheres (1977), de Robert Altman, filme no qual Shelly Duvall e Sissy Spacek vivem uma relação de amizade em que fragilidade e narcisismo são quase espelhos. Optando por assumir uma postura quase voyeur, Laurent coloca a câmera como testemunha dessas agressões. Daí surge a pergunta: como uma relação destrutiva se constitui? Essa codependência emocional tem como consequência a abolição de territórios intocáveis, onde a moral e a expectativa pela retribuição da amizade vigiavam as desmedidas/desmesuras das paixões.
Na aula de Filosofia, no início da película, o professor de Charlie cita Nietzsche, dizendo que “as paixões são nocivas quando se tornam excessivas”. E pergunta, “A paixão é um caminho ou um obstáculo à liberdade?” Platão fala sobre as paixões como um perigo a ser evitado, defende a temperança, a frugalidade e a parcimônia. O apego em demasia representa um embaraço ao exercício da liberdade. Em Respire, há excessos: de luz, que irradia a iluminação da vida de Charlie com o aparecimento de Sarah, de cores vibrantes, de planos abertos que revelam a solidão e o distanciamento e dos ataques de asma de Charlie – sintoma de uma claustrofobia que lhe invade a vida. Neste sentido, a fotografia de Arnaud Potier realiza um notável trabalho na apresentação dessas emoções (em uma bela fusão entre visual e narrativa).
E há também uma simbolização explícita (e eficaz) a uma relação tóxica na figura de uma planta danosa para o vegetal que está mais próximo. Alimentar-se do outro para sobreviver, para prosseguir com a fantasia e se encaixar no novo ambiente. Se a paixão cega a ponto de transformar admiração em obsessão, Charlène se enreda nesse sentimento que a direciona a Sarah. A sua vida ganha significação ou se ressignifica a partir desse encontro com aquela que se mostra tão cativante. E é justamente nesse ponto que enlevo e frustração se digladiam, culminando na “queda do paraíso”, mas insistindo em sua recuperação. A espera requer sacrifícios e aceitação da tortura psicológica que surge durante essa jornada de paciência. Charlie é a representação de uma resignação doentia e Sarah é uma mitomaníaca perversa que tenta controlar um jogo em que impõe a sua presa uma única saída: a da autoflagelação emocional.
Será Charlie reflexo da submissão de sua mãe, que se conforma com um marido abusivo, no que concerne ao domínio psicológico da relação? E Sarah é fruto do seu lar desfeito, cuja mãe alcoólatra se especializou em oprimi-la e envergonhá-la? Espécies de herança e condicionamento cultural que as limitam e fazem-nas reproduzir o que há de frágil e cruel no mundo.
O antagonismo entre as adolescentes é também similaridade, já que ambas se rendem àquilo que acreditam ser. Há certo conformismo na aceitação de como processam o modo de percepção do mundo (e dos afetos) e na maneira de retroalimentar seus desejos. E esse comportamento gera uma simbiose, na qual cada uma delas contribui para ser vítima e algoz de seu pesadelo juvenil. Cada uma delas têm o seu jeito de tentar exercer o domínio na relação (a espera de Charlie também pode ser traduzida como uma forma de busca do controle). De todo modo, o silêncio de Charlie e a malícia de Sarah se encontram e refletem um tempo de paradoxos vigorosos.
Então, em certa altura, Charlie, depois das consecutivas manifestações de desprezo por parte de Sarah e o acúmulo de perdões, percebe que sua resignação apenas afasta e torna seu objeto de paixão mais brutal em sua mordacidade. Desse modo, a tênue linha entre indiferença e escárnio é rompida. E a paixão excessiva, desde o prelúdio tenso na residência de Charlie (no amor e ódio dos pais, presenças lesivas e ausências prejudiciais), enfim, toca a tragédia anunciada.
Em um dos grandes momentos da direção concisa de Laurent, um travelling lateral revela a vida devastada de Sarah e como Charlie se encarrega de transformar a descoberta de uma mentira em compaixão. E é uma combinação de talentos que faz de Respire, apesar do ponto de partida corriqueiro, uma produção instigante, que lida com as máscaras que usamos cotidianamente (até por sobrevivência) e com a complexidade que envolve as relações humanas (a construção da identidade de jovens mulheres em um contexto social em que o desamparo é uma “regra”). Assim, com o conhecimento técnico, criatividade artística e a sensibilidade de Laurent, a fotografia de Potier, a entrega incondicional, de uma naturalidade impressionante, das jovens Japy e De Laage às suas personagens e a originalidade narrativa (mérito de uma conjuntura), ainda mais por navegar em águas conhecidas nas telas do cinema, Respire consegue fugir de clichês e trazer como elemento decisivo a imprevisibilidade.
*Publicado originalmente por Wuldson Marcelo em Nostálgicas Primícias