Responde Ly – Por Carla Cunha
Na coluna mensal “Teia Labirinto” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Carla Cunha escreve sobre Literatura Erótica e Pornográfica. O nome da coluna nos remete à trama e aos caminhos enrodilhados que todos nós enfrentamos ao pensar na própria sexualidade. Nessa trajetória, pontos se conectam e produzem uma teia de informações sobre quem somos. Porém, às vezes, não encontramos o caminho e a sensação é como se estivéssemos num Labirinto.
Carla Cunha é paulista, escritora de Literatura Erótica e Pornográfica, mantém um blog com textos sobre o tema e em 2019 lançou Vermelho Infinito.
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Responde Ly
Quipa aparece no final da tarde. Diz coisas desconexas: estou sem alho, sem tomate, meu cabelo está caindo, e se eu te falar que peguei o coronavírus? Confusa com a troca de assunto repentina, calo-me. Nunca se sabe o que pode acontecer com o emocional de uma pessoa na pandemia. Entra, fiz café, tem bolo de laranja. Quipa não sai de casa para nada, faz compras online, recebe os produtos pelo elevador, pega as caixas com luvas, máscara, retira as embalagens com cuidado, lava tudo. O único contato que tem é comigo e também não circulo mais desde abril. Moramos no mesmo andar num edifício da rua Lopes Chaves, quase vizinhos de porta. Por isso, é bem provável que Quipa tenha se assustado. Quem sabe pesadelo, comum em tempos inseguros. Ele entra espevitado, senta-se em frente ao balcão da minha cozinha, fecho o notebook em demonstração de interesse. Quipa fala sem parar, nervoso, conta-me que se sentiu mal na noite passada, tonturas, sons indecifráveis, calafrios, insônia. Quando finalmente dormiu, sonhou que corria por um campo fugindo de uma tropa de animais selvagens. Escuto, depois retruco. Você precisa fazer o exame. Já fiz, o rápido, hoje pela manhã, deu negativo. E como você se sente agora? Pergunto. Bem, acordei mais tarde, tomei café, depois almocei talharim ao molho bolonhesa, uma taça de vinho. Então foi alarme falso? Interrompi. Não sei, responde, enquanto toma o café num gole, devora o bolo como um bezerro faminto e ainda me pede mais. Sirvo uma segunda porção com exagero. Quipa come. Não parece normal, mostra-se agitado. Uma coisa é certa, quem não morrer pelo colapso do sistema respiratório causado pela virulência do Covid-19, mais cedo ou mais tarde perde a sanidade mental, com mínima chances de recuperar. Resolvo fumar um cigarro, passar mais café, enquanto ele fala do desastre na saúde, da crise climática, da tia que não sabe como manter a loja de roupas. Penso no que dizer, mas não tenho tempo de formular resposta, pois ele já trocou de assunto. Viro-me do fogão para observá-lo, só agora percebo seu cabelo crescido, alvoraçado ao redor da cabeça. Não faz muitos dias, estava alinhado. Seja como for, independente das neuroses colocadas à prova em tempos nefastos, acabaremos na cama, chupando um ao outro sem saber do movimento rotacional da terra, sem saber se já está noite, se chove e, sobretudo, sem tomar conhecimento das estatísticas catastróficas divulgadas pelo Ministério das Saúde. A vida é assim, quem fica, que se vire com o que tem ou com o que pode, porque nesse inferno, todos somos diabos. No meu caso, tinha o sexo com o vizinho e agora também as suas loucuras. Tento elevar a conversa, comento sobre o desejo de conhecer a Patagonia, contemplar a parede glacial Perito Moreno. Ele retruca: esquece. Não será possível retomar as viagens tão cedo. Além disso, é perigoso baixar a imunidade em local tão frio. (Caralho!) Quipa está num surto de pessimismo, de tudo reclama. Digo, claro, verdade. Quer mais bolo? Quero. (Comendo assim, infartará de um jeito que é bem capaz da gente nem transar hoje). Sirvo uma terceira fatia, tento diminuir o tamanho, mas ele reclama. Pode colocar todo esse pedaço, exige. Claro, você tem razão. Quipa devora o bolo, sirvo também o café recém feito, ele toma. Troco o assunto e digo que pensei nele aquela tarde, ele não escuta, quer falar de um caso que circulou nas mídias sobre gafanhotos, depois ciclone bomba. Digo, claro, verdade. (Preciso de outra estratégia). Abro o spotify, dou play no álbum da Vanessa da Mata, ele não se cala, fala de um acidente na Marginal, ruptura de órgãos internos, fratura exposta, sangue, morte súbita. A voz dela é tão suave, tão linda, quer tirar essa roupa?, tomar um banho?, você precisa relaxar Quipa. Voz de quem? Ele pergunta. Ah! Da Vanessa. Que Vanessa? Vanessa da Mata, cantora, você me disse uma vez que gostava da música dela. Quer uma taça de vinho tinto? Tenho Carmèneré do Chile, que tal? Não, não, o vinho pode tirar o efeito do remédio. Remédio?! Você está tomando uma medicação? Não, não estou, mas se precisar tomar. Claro, verdade, respondo. Quipa está mesmo fora de controle, não sei o que fazer. Quipa, quero chupar você, o que acha? Silêncio no apartamento e finalmente consigo tirar um sorriso malicioso dele. (Incrível como os gatilhos mentais masculinos são previsíveis). Abro a boca com lentidão, sugerindo o desejo pelo ato, digo, a chupada. Ele tira a jaqueta. Pensando melhor, quero aquele vinho. Ótimo! Sirvo a taça quase até a borda com a intenção de deixar Quipa de pilequinho. Aliás, entenda uma coisa de uma vez por todas, às vezes na vida ou você é elegante ou você é original para excitar um cara e deixá-lo entregue para ser cavalgado. Verdade? Verdade seja dita, a humanidade talvez não resista, não por causa do vírus, mas justo porque nos afastamos daquilo que deveria ser humanidade, a terra pode ser devastada e eu não tenho orgasmos a perder. Tempo é orgasmo, como vocês bem sabem. Quipa se aproxima, beija meu pescoço. Tomo um gole generoso de vinho e tiro a blusa. Vanessa canta “As palavras”. Mexo o corpo na mesma frequência da música e também o beijo no pescoço. Quipa parece normal agora. Deixou a loucura do discurso jornal nacional de lado e entregasse ao momento. Tira a camisa, o pau duro nas calças. Excelente! Vamos nessa! O cabelo volumoso entrelaça por entre meus dedos, encosto no balcão para conseguir equilíbrio. Ali, alguém chupará alguém, melhor uma base bem firme, deixando todos confortáveis. Ele desce com os lábios firmes, molha a pele do meu peito e chega finalmente no bico histérico do seio, volumoso a pedir o toque áspero da língua. Adoro olhar Quipa posicionar a boca precipitando os músculos e piscando rapidamente as pálpebras como se fosse um animal buscando a fonte de vida. Quipa não me olha em nenhum momento, permanece ali. Massageia com uma das mãos o seio e lambe a borda do bico do seio com a língua. Sinto a boceta encharcar, entendo que urge a penetração, mas Quipa permanece entretido nos peitos e não tem a mínima pressa. Cheiro seus cabelos, almíscar picante dos que são selvagens. Sinto o meu jeans molhar e penso na emergência que me encontro. Agora, é em mim que a neurose borbulha. Quipa ainda maneja os seios, resolvo empurrar o cimo da cabeça dele em direção a minha boceta. Quero ser chupada por Quipa. Ele não cede, insisto. Ele se desvencilha, quer chupar meus seios ao infinito. Canso-me. Quero chupada, penetração, orgasmos, putaria. Fala putaria para mim Quipa. Vamos! Me chama de vagabunda, puta. Vamos Quipa! Quipa me olha, ofegante, a pele do meu peito já avermelhada de tanto ele manipular. Quipa!, o chamo mais uma vez, mas ele parece estar em outra galáxia. Quipa! Quipa! Ele não responde nada. Quipa! Por insistência responde com um mmmé, mmmé de bezerro. Poe-se de quatro na sala do apartamento a berrar o som do bizarro. E grita para mim, responde Ly, responde com seu berrinho, vai Ly. Juro que não consigo raciocinar rápido para entender o que acontece ali. Quipa dá coices no ar e solta seu berro de bezerro: mmmmeeeé, mmmmé. Eu respondo: “mmmmmeé, mmmmmé!”. O que a gente não faz por uma foda? Sinceramente, não sei onde a loucura de 2020 vai nos levar. Sinceramente!
(Ilustração de capa: Fernanda Bienhachewski).